A execução da pena da população transgênero em conflito com a Lei Penal: algumas breves considerações

04/06/2025

A execução da pena da população transgênero em conflito com a Lei Penal: algumas breves considerações


*Grégori Lucas Dias da Silva é Graduando em Direito. Membro da Liga LGBT do IDP. Associado da ABJD-DF


O tema da execução penal no Brasil constitui uma das prolíficas vicissitudes que compõem o nosso sistema jurídico. Em um país de dimensões continentais, com um complexo prisional aquém às demandas de um aparato baseado integralmente na lógica do cárcere e da criminalização em excesso, é óbvio que problemas estruturais originados dessa engrenagem social seriam dignos de reparação e cuidado.

Nesse contexto de estado de coisas inconstitucional, a previsão de segregação executória da pena de reclusão de pessoas transgênero envolve complicadores de natureza existencial. Parte desses complicadores foram tratados no Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 527, ação de controle concentrado ajuizada pela ABGLT, que buscava remediar o desatino existente entre a identidade de gênero da pessoa transgênero apenada e a população carcerária que dividirá cela com ela ou apartada dela.

Em um primeiro momento, o Ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF, autorizou em decisão de caráter liminar que mulheres transgênero e travestis de identidade feminina fossem transferidas para presídios femininos. Após, o Ilmo. Relator determinou que houvesse uma escolha por parte da população carcerária transgênero sobre qual instalação prisional ela deveria cumprir a pena. Depois dessa segunda liminar, quando analisado o mérito, no entanto, o Tribunal decidiu que, por haver uma inovação promovida pela Resolução n.º 366 de 20/01/2021 do Conselho Nacional de Justiça, a ação perdeu objeto, não demandando nova pronúncia do Pretório Excelso. 

A partir da Resolução n.º 366 do CNJ, os artigos 7º e 8º da Resolução n.º 348 de 13/10/2020, que tratam sobre o cumprimento de pena e a custódia cautelar de indivíduos transgênero, passaram a contar com a seguinte redação:

Art. 7º Em caso de prisão da pessoa autodeclarada parte da população LGBTI, o local de privação de liberdade será definido pelo magistrado em decisão fundamentada.

§ 1º A decisão que determinar o local de privação de liberdade será proferida após questionamento da preferência da pessoa presa, nos termos do art. 8º, o qual poderá se dar em qualquer momento do processo penal ou execução da pena, assegurada, ainda, a possibilidade de alteração do local, em atenção aos objetivos previstos no art. 2º desta Resolução.

§ 1º-A. A possibilidade de manifestação da preferência quanto ao local de privação de liberdade e de sua alteração deverá ser informada expressamente à pessoa pertencente à população LGBTI no momento da autodeclaração.

[...]

Art. 8º De modo a possibilitar a aplicação do artigo 7º, o magistrado deverá:

[...]

II – indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas, onde houver; e

III – indagar à pessoa autodeclarada parte da população gay, lésbica, bissexual, intersexo e travesti acerca da preferência pela custódia no convívio geral ou em alas ou celas específicas.

Essa regulação editada pelo CNJ permitiu ao Poder Judiciário requalificar o entendimento adotado para a circunstância do cumprimento de pena e de segregação cautelar de pessoas transgênero que antes viviam em um limbo jurídico que as vulnera em uma instalação penitenciária que não admitia a sua identidade de gênero e impunha uma violência atroz contra seu corpo. 

No Habeas Corpus n. 861.817/SC, com a resolução já produzindo efeitos para a magistratura, o Ministro Jesuíno Rissato asseverou, em consonância com o quanto definido pelo CNJ, que [é] dever do Judiciário indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas.

O writ trazido pela Defensoria Pública do estado de Santa Catarina versava sobre uma decisão do juízo de execução penal que havia determinado o recolhimento de uma mulher transgênero a instalação prisional masculina, ressalvada a circunstância de ter o juízo preteritamente considerado o presídio incompatível para acolher a paciente em cela privativa ou que acolhesse pessoas transgênero em espaço apartado do convívio geral, não havendo tempo hábil para mudança efetiva nesse quadro no intervalo entre a decisão que negou a conformidade da unidade penitenciária e a decisão que determinou a transferência.

Ao dispor de direito fundamental subjetivo da parcela transgênero da população, o Estado, como bem lembrado pelo Ministro Rissato, tem a obrigação de resguardar a incolumidade física, moral e psíquica de dissidentes de gênero recolhidas no sistema penitenciário, sob pena de incorrer em violação sistemática aos direitos e garantias de transgêneros. 

No bojo da ADI 4275/DF, o Supremo Tribunal Federal definiu que [a] identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Sendo manifestação volitiva da própria pessoa que constitui a sua identidade da forma que melhor atender ao direito unipessoal à busca da felicidade, compete ao Estado não só evitar qualquer intervenção exógena na constituição de tal identidade (Übermassverbote), como também proteger o direito de celebrá-la socialmente por meio da expressão de gênero e autodesignação (Untermassverbote), incluindo, especialmente, o contexto carcerário sobre o qual o Poder Público deve administrar.

Na mesma linha dessa construção doutrinária e jurisprudencial, em decisão da lavra do Ministro Reynaldo Soares Fonseca, o Tribunal da Cidadania determinou que o juízo de Execução do Distrito Federal procedesse à aplicação do inc. II do art. 8º da Resolução n.º 348/2020 do CNJ e promovesse, imediatamente, a transferência da detenta a instalação penitenciária que fosse condizente com a sua identidade de gênero (HC n. 955.966, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, DJEN de 12/05/2025.).

A situação fática do caso supracitado — onde houve manifestação de vontade da detenta solicitando transferência a unidade prisional feminina, na qual não se adaptou bem por ter se identificado à época como um homem cisgênero homoafetivo, para depois requerer o retorno à unidade prisional feminina, por se identificar novamente como mulher trans — fez com que a liminar, a princípio, fosse negada em primeiro plano. Após reiteração do pedido, o Ministro entendeu que não haveria razão jurídica para negar a transferência, pois a resolução confeccionada pelo Conselho Nacional de Justiça não impede que seja retificado o status quo da paciente para ocupar estabelecimento prisional diverso ou ala, ou cela, específicas para acolhê-la. 

Nesse contexto, é imperativo considerar que a identidade de gênero não é uma realidade estanque e imutável, insuscetível a alterações de percepção de ordem individual ou coletiva. A autoconcepção pessoal a respeito de quem se é depende, muitas vezes, de fatores alheios à circunstância volitiva do indivíduo atomizado.

Perdura sobre as características de inferência de gênero uma pressão imensurável sobre a identidade de pessoas transgênero, especialmente em um contexto de privação de liberdade com detentos cisgênero que, por ausência de letramento e de interesse sobre questões de dissidência generificada, impõe as suas normas sociais com o uso de violência e grave ameaça.

Com base nisso, entende-se correta a aplicação do direito pelo Ministro Reynaldo Fonseca ao conceder a liminar, pois, em um contexto abrangente de um complexo penal eivado de possibilidades de violência simbólica e física, a identidade de gênero perpassa um traço que, infelizmente, pode ser hostilizado por pressões sociais advindas de indivíduos que não compreendem a complexidade da construção de gênero. 

Adiro, para fins de investigação perfunctória do fenômeno gênero, o entendimento de Judith Butler. A filósofa da Universidade de Berkeley entende que o gênero é uma expressão de atos performativos e constitutivos, sendo a própria impressão adotada sobre a performatividade dos atos uma estilização de tais atos antropocênicos a partir de uma lente generificada. Isso quer dizer que, a despeito dos melhores esforços daqueles que buscam fidelizar essa categoria a um determinismo biológico tacanho, o gênero não é um signo que pode se impor nem se constituir uma única vez no espaço-tempo. Ele é, em sua própria essência fenomenológica, um compêndio de ações performadas e constituídas estilizadamente em um dado espaço temporal.

O direito, assim como as demais ciências sociais, é o campo de exame de tais realidades. Porém, apesar de existir um dever de se analisar tais temas à luz das teorias das ciências sociais, o direito deve ir além, perscrutando tais fenômenos via uma ótica aplicável à realidade, não caindo na armadilha de efetivar diagnósticos e sonegar alternativas exequíveis.

Existe uma questão complexa posta a debate, sendo a necessidade de se incluir corpos dissidentes na lógica de um direito penal minimamente humano, e para que a solução para essa questão seja adequada ao paradigma constitucional eleito em 1988 é imprescindível acompanhar a complexidade dos fenômenos sociológicos sem olvidar que sobre eles se encontram ali uma pessoa humana, com dignidade inerente e direitos inalienáveis, mesmo para o onipotente e onipresente aparato repressivo do Estado. Não devemos nunca nos esquecer que sobre cada processo repousa uma pessoa, que transcende a mera dogmática positivista do direito. Urge, portanto, um compromisso ético e uma empatia minimamente constituída de operadores de direito para evitar que as injustiças se perpetuem sem qualquer desafio legal — mesmo que o punitivismo míope nos impeça de enxergar um horizonte positivo sobre o destino daqueles que estão recolhidos ao cárcere. 

Leia o artigo completo a seguir com as notas de rodapé: A Execução da Pena da População Transgênero em Conflito com a Lei Penal_ Algumas Breves Anotações.pdf


Este artigo de opinião integra o Observatório Justiça e Democracia (OJD). Este conteúdo não expressa necessariamente a posição da ABJD sobre o tema exposto, sendo apenas a posição de seus autores.

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