Princípio da Bagatela: o Estado-juiz e as Suas Incongruências

24/02/2025

Princípio da Bagatela: o Estado-juiz e as Suas Incongruências


Grégori Lucas Dias da Silva

Graduando em Direito na Escola de Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (EDAP/IDP) em Brasília. Foi integrante da Clínica de Direitos Humanos do /IDP no eixo que tinha como foco a promoção e ampliação dos direitos da população LGBTQIAP+. É membro da Liga LGBT do IDP (representação do corpo estudantil) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). É integrante do Grupo de Pesquisa sobre Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da EDAP/IDP e do (R)existir - Núcleo LGBT+ da Universidade de Brasília (UnB).



O Direito Penal é um dos instrumentos periclitantes do Estado para o controle social de condutas que reputem reprováveis e relevantes para a perturbação da paz social (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal-parte Geral: Arts. 1º a 120 - Vol.1 - 29ª Edição 2025. p. 1). Por meio dele, a pretensão punitiva do Estado se manifesta e adquire contornos que permitem expressar a mão forte do Leviatã sobre a liberdade fundamental dos cidadãos.


Apesar de sua classificação teórica como ramo fragmentário e subsidiário do exercício do poder persecutório, o Estado penal goza de um prestígio que o faz ser acionado a qualquer momento para resolução de conflitos de grande e menor relevância. O seu papel nos feitos de menor importância é o que se busca criticar nesse texto.


A doutrina dos autorizados juspenalistas aduz que os bens jurídicos protegidos são selecionados a dedo, no campo legislativo, com o objetivo de eleger prioridades na seara da política criminal. Assim leciona Damásio de Jesus (Código penal anotado. 23. ed. 2015. p. 9), Fernando Capez (Curso de Direito Penal-parte Geral: Arts.1º a 120 - Vol.1 - 29ª Edição 2025. 29. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2024. p. 1),  Rogério Greco (Curso de Direito Penal - Vol. 1 - 26ª Edição 2024. 26. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024. p. 3). 


Nem toda violação à norma penal é digna de ser perseguida pelo Estado acusador ou sancionado pelo Estado juiz, pois, como adverte Guilherme Nucci: 


“[...] o direito penal deve ser visto como subsidiário aos demais ramos do direito. Fracassando outras formas de punição e de composição de conflitos, lança-se mão da lei penal para coibir comportamentos desregrados, que possam lesionar bens jurídicos tutelados. LUIZ LUISI sustenta que o Estado deve evitar a criação de infrações penais insignificantes, impondo penas ofensivas à dignidade humana. Tal postulado encontra-se implícito na Constituição Federal, que assegura direitos invioláveis, como a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, bem como colocando como fundamento do Estado democrático de direito a dignidade da pessoa humana. Daí ser natural que a restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se torne possível caso seja estritamente necessária a imposição da sanção penal, para garantir bens essenciais ao homem.” (NUCCI, Guilherme de S. Curso de Direito Penal - Vol. 1 - 8ª Edição 2024. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. p. 73)


Todavia, a despeito de subsistir amplo aporte teórico que prevê limitação ao arbítrio estatal em detrimento de uma política criminal expansionista aventada por posturas draconianas, persiste entre alguns juristas a percepção de que o Direito Penal seria a panaceia de todos os ilícitos, independentemente da dimensão da violação que defronta o operador do Direito.


No Recurso em Habeas Corpus n. 126.272, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, à unanimidade, trancar com base no princípio da bagatela um processo criminal que visava punir o furto de steaks que valiam R$ 4,00 (quatro reais). Sim, um furto totalizado em quatro reais. Assim foi deduzida a ementa:


RECURSO EM HABEAS CORPUS. FURTO. TRANCAMENTO DO PROCESSO. INSIGNIFICÂNCIA. VALOR ÍNFIMO. CONCEITO INTEGRAL DE CRIME. PUNIBILIDADE CONCRETA. CONTEÚDO MATERIAL. BEM JURÍDICO TUTELADO. GRAU DE OFENSA. VALOR ÍNFIMO DA SUBTRAÇÃO. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO. (RHC n. 126.272/MG, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 15/6/2021.)


No caso em espécie, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, quando da análise do pedido de Habeas Corpus, asseverou o seguinte:


“Ressalte-se que, ainda que assim não fosse, quanto ao princípio da insignificância coaduno pela inviabilidade de ingerência do mesmo no ordenamento jurídico brasileiro, vislumbrando, ademais de outras consequências jurídicas e práticas, a condescendência delitiva, que não pode ser tida como invisível pelo Estado, pois se trata, a princípio, de fato típico, ilícito e culpável. A meu ver, a aplicação do referido princípio importaria no desprestígio da função preventiva da norma, estimulando a reiteração de delitos.”


Ignora-se, no momento, a discussão promovida pelo Ilmo. Ministro Rogerio Schietti Cruz sobre a atipicidade da conduta ou a punibilidade concreta do delito a partir do conceito integral de crime. 


Parece-me muito mais relevante para os fins deste artigo opinativo acentuar no caso em comento que os magistrados de 2º grau, a despeito do princípio da insignificância ter suas raízes doutrinárias fincadas no ordenamento jurídico desde 1989 pelo Supremo Tribunal Federal, se recusam a reconhecer que a conduta perseguida não merece atuação do Estado. 


Há magistrados que, infelizmente, reconhecem a sua função desinteressada e imparcial como simbiótica com as das polícias e do Ministério Público. Estes juízes, apesar de suas qualidades, confundem o seu papel com aquele de agente de segurança pública, elegendo a si próprio o ideal de evitar a criminalidade e reprimi-la. 


A concepção errônea de que ao magistrado cabe a consideração de elementos estranhos dos autos que obstaculizam a liberdade do acusado e perpetuem contra ele uma ação penal que não ostenta justa causa, i.e. a reincidência delitiva quando o fato é materialmente atípico, é consequência de um fenômeno que o professor Marcos Queiroz nomina como hermenêutica senhorial.


Anota o professor Marcos Queiroz sobre a hermenêutica senhorial:

“Neste  aspecto,  a  hermenêutica  senhorial  opera  como  um  duplo.  Por  um lado, ela é a legitimação técnica ou a ausência de controle corretivo da brutalidade social,  que  tem  como  protagonista principal  o  próprio  Estado  brasileiro.  O  seu discurso  cordial,  pomposo  e  liberal  realiza  uma  cisura,  criando  a  ilusão  de  que tribunais de mármore e engravatados em terno italiano não têm nenhuma relação ou responsabilidade perante a violência que saem dos fuzis, fardas e coturnos nas madrugadas  adentro  das  periferias.  Por  outro  lado  e  ao  mesmo  tempo,  esses derramamentos  de  sangue  são  incorporados  como  rituais  jurídicos,  em  que  o sacrifício de pessoas negras opera como elemento saneador do direito, restaurando a  aparência  de  plena  legalidade  das  instituições  estatais.  O  linchamento,  o massacre   e   a   chacina –vistos  e  tidos  como  excepcionais,  “descontroles esporádicos” contra “selvagens”, criminosos e inimigos públicos, os “ninguéns” de  toda  ordem  (Silva,  2014) –são  necessários  para  contrastar  com  a  atmosfera calma,   higienizada   e   pudica   do   mundo   oficial,   em  que  juízes,   advogados, professores, políticos, ministros e secretários constroem suas teses e decisões.” (QUEIROZ, Marcos. Hermenêutica Senhorial. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 721–735, 2024. DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52078. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/52078. Acesso em: 14 fev. 2025.)


Esses intérpretes do Direito, formados em uma longa tradição à moda saquarema, acostumados ao poder e ao arbítrio fundado em uma ideologia voltada à propriedade como valor absoluto, avizinham no seu rol de incumbências a função de tutelar a sociedade e o seus outcasts por meio do Direito Penal do Autor, até mesmo quando os princípios e a interpretação proporcional aos fatos sob análise não autorizam uma postura punitivista.  


Seja a conduta atípica ou a punibilidade concreta afastada, a hermenêutica senhorial garante ao jurista o decisionismo necessário para negar o encargo institucional do magistrado de proteção dos direitos fundamentais do réu. 


Tal postura interpretativa é, como lembra Marcos Queiroz, informada pelo conteúdo absoluto do direito de propriedade. Tanto é que o princípio da insignificância, quando aplicado a crimes tributários, opera com sonegação fiscal de até R$ 20.000,00, enquanto para crimes contra o patrimônio, um furto de, repita-se, R$ 4,00, demanda persecução estatal. É salutar considerar que o Direito Penal é uma ferramenta do Leviatã que se reveste da possibilidade de supressão do bem mais relevante do indivíduo: a sua liberdade. O juiz que arvora a sua atividade na conjugação de deveres para com a segurança pública, nominalmente com o direito à propriedade, em vez dos direitos fundamentais daqueles que estão sob o jugo penal, trai a sua missão no ordenamento jurídico. 


Se o acusado encontra no juiz um agente estatal voltado à negação de suas teses defensivas de pronto, independentemente da dogmática e da subsunção teórica do caso concreto, a jurisdição torna-se uma vulnerabilidade..


Compete ao jurista que se contrapõe a esta hermenêutica senhorial, alinhado com os ideais de um Direito voltada à inclusão e à justiça social, desvencilhar do seu ofício a cumplicidade com os absurdos de uma violência institucional calcada na ausência de crivo para adoção da solução ao caso concreto que melhor atenda ao princípio da dignidade da pessoa humana. Prender alguém por furtar R$ 4,00 de steak de frango, independentemente da contumácia delitiva, corresponde à barbárie normalizada pelos juristas alinhados aos desejos da classe dominante. 


Notas:

1. Graduando em Direito na Escola de Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (EDAP/IDP) em Brasília. Foi integrante da Clínica de Direitos Humanos do /IDP no eixo que tinha como foco a promoção e ampliação dos direitos da população LGBTQIAP+. É membro da Liga LGBT do IDP (representação do corpo estudantil) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). É integrante do Grupo de Pesquisa sobre Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da EDAP/IDP e do (R)existir - Núcleo LGBT+ da Universidade de Brasília (UnB).
2. “O direito penal é considerado a ultima ratio, isto é, a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra solução não pode haver senão a criação de lei penal incriminadora, impondo sanção penal ao infrator. Como bem assinala MERCEDES GARCÍA ARÁN, “o direito penal deve conseguir a tutela da paz social obtendo o respeito à lei e aos direitos dos demais, mas sem prejudicar a dignidade, o livre desenvolvimento da personalidade ou a igualdade e restringindo ao mínimo a liberdade” (NUCCI, Guilherme de S. Curso de Direito Penal - Vol. 1 - 8ª Edição 2024. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. p. 73).

3. RHC  66.869, Rel. Min. Aldir Passarinho, Segunda Turma, j. 06.12.1988, DJ 28.04.1989.

4.  “[...] O combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário), através da polícia, como se lê nos incisos do artigo 144 da Constituição, e do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promover a ação penal pública (artigo 129, I).” (HC 95009, Relator(a): EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 06-11-2008, DJe-241  DIVULG 18-12-2008  PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-06  PP-01275 RTJ VOL-00208-02 PP-00640)

5.  “Isso porque, levando em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o paciente possuir antecedentes criminais. Partindo-se do raciocínio de que crime é fato típico e antijurídico ou, para outros, fato típico, antijurídico e culpável, é certo que, uma vez excluído o fato típico, não há sequer que se falar em crime.” (HC 176563 Relator(a): Min. GILMAR MENDES Julgamento: 15/10/2019 Publicação: 18/10/2019) c/c “É por isso que reputo mais coerente a linha de entendimento segundo a qual, para incidência do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa e não os atributos inerentes ao agente, sob pena de, ao proceder-se à análise subjetiva, dar-se prioridade ao contestado e ultrapassado direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato.” (RHC 210198, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 14/01/2022, Publicação: 18/01/2022)

6. “Machado de Assis foi o melhor intérprete do modo de ver e falar da Casa-Grande, que chamamos de hermenêutica senhorial (Queiroz, 2022). Seguindo a hipótese de Ilmar  Rohloff  de  Mattos  (1987)  de  que  os  sentidos  do  tempo  saquarema  se estendem até nós, podemos dizer que essa hermenêutica continua a reger nossas relações   sociais,   particularmente   a   cultura   jurídica,   constituindo   a   forma dominante com que o direito é teorizado, formulado, interpretado e aplicado no Brasil.” (QUEIROZ, Marcos. Hermenêutica Senhorial. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 10, n. 1, p. 721–735, 2024. DOI: 10.26512/revistainsurgncia.v10i1.52078. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/52078.)

7.  “Além disso, o direito penal não se destina a punir meras condutas indesejáveis, “personalidades”, “meios” ou “modos de vida”, e sim crimes, isto é, condutas significativamente perigosas ou lesivas a bens jurídicos, sob pena de se configurar um direito penal do autor, e não do fato.” (HC 123.108, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 03.08.2015, DJe 01.02.2016)

8. Tema Repetitivo n. 157/STJ, disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=157&cod_tema_final=157.




Este artigo de opinião integra o Observatório Justiça e Democracia (OJD). Este conteúdo não expressa necessariamente a posição da ABJD sobre o tema exposto, sendo apenas a posição de seus autores.

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