Lei da Ficha Limpa e anistia no Brasil

18/12/2024

Lei da Ficha Limpa e anistia no Brasil


Por Ana Carolina Moreira Santos

Advogada criminalista. Mestra e Prof. universitária

Por Gustavo Gouvêa Villar

Advogado e integrante da Coordenação Executiva Nacional da ABJD

Os quatro anos de mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) acrescentaram à democracia brasileira mais um momento de turbulência e de fragilização. Durante esse período sucederam-se diferentes e sucessivos atos e gestos que corroboram essa análise. As constantes interferências nos órgãos de direção da Polícia Federal, o enfraquecimento institucional do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) retirando-o da gestão do Ministério da Justiça, os permanentes ataques à liberdade de imprensa, o fomento de articulada rede de produção de notícias falsas e de desinformação, a indicação de ministros reacionários subjugados aos interesses pessoais e ideológicos do seu padrinho para o Supremo Tribunal Federal (STF), as sistemáticas investidas para a descredibilização do órgão de cúpula do Poder Judiciário e da Justiça Eleitoral brasileira e o não reconhecimento do resultado das eleições gerais de 2022 seguiram um roteiro premeditado de tentativa de ruptura da democracia representativa no Brasil, que culminaria na forçosa publicação do decreto de garantia da lei e da ordem pelo Presidente legitimamente eleito. 

De fato, o crescimento de movimentos da extrema direita e a sua conquista de espaços institucionais não é fenômeno que se restringe ao Brasil. Entretanto, ao menos aqui, encontrou contenção na condenação de inelegibilidade por oito anos do seu representante máximo e de alguns dos seus seguidores – Daniel Silveira, Sara Winter, Gabriel Monteiro, todos cumprindo penas privativas de liberdade — e na persecução penal das mais de mil pessoas que atacaram e depredaram prédios públicos federais em Brasília — e seus financiadores — em ato orquestrado para subverter a ordem democrática. 

No que se refere ao ex-presidente Bolsonaro, o impedimento para que se candidate a cargos eletivos até o ano de 2030, provém do julgamento da ação de investigação judicial eleitoral, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que o condenou “pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação”, declarando sua “inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022”, por maioria de votos, nos termos da Lei complementar 64/1990.

A chamada “Lei da Ficha Limpa”, lei complementar n.º 135/2010, alterou a Lei de Inelegibilidade (LC 64/1990), ampliando as hipóteses de inelegibilidade para cargos públicos, sendo a sua inovação importante conquista civilizatória advinda dos movimentos sociais — eis que proveniente de projeto de iniciativa popular de quase dois milhões de brasileiros.  

A sua incidência impõe aos condenados por atos de desvio de conduta, contrários à probidade ou à moralidade administrativas no exercício do mandato, o lapso de até oito anos de inaptidão para concorrer a cargos eletivos. A ampliação legislativa contempla crimes de natureza diversa, como contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o sistema financeiro, o mercado de capitais e contra o meio ambiente e a saúde pública.  

No rol das ilicitudes que conduzem à inabilitação eleitoral encontram-se, ainda, os cometidos por candidatos condenados por crimes eleitorais com previsão de pena privativa de liberdade, crimes de abuso de autoridade — em casos de condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública — de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, de tráfico de entorpecentes e drogas afins, crimes de racismo, tortura, terrorismo e hediondos, de redução à condição análoga à de escravo, crimes contra a vida e a dignidade sexual, e, por fim, crimes praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando. 

O importante instituto pátrio para a garantia da integridade dos representantes eleitos pelo povo não encontra paralelo nos Estados Unidos da América, por exemplo. Lá, condenações por atos cometidos no exercício do mandato e nem mesmo condenações pelo cometimento de crimes comuns impedem que qualquer cidadão ou cidadã se coloque publicamente na disputa de mandatos eletivos. 

No último dia 5 de novembro, aliás, os eleitores estadunidenses escolheram para ocupar o cargo máximo do Poder Executivo Donald Trump4, o primeiro ex-presidente da história daquele país a ser condenado criminalmente por falsificar registros financeiros empresariais. Há, ainda, quatro processos de natureza criminal em andamento, envolvendo o caso do motim, invasão e depredação do Capitólio e conspiração nas eleições de 20205, pesando ainda sobre ele demandas cíveis. 

Voltando ao Brasil, a eleição de Donald Trump — importante representante da extrema direita mundial — animou os bolsonaristas (e o próprio Jair Bolsonaro) que veem no fato uma reconquista de evidência e de espaço político, apostando que os Projetos de Lei n.º 2858/2022 (Câmara dos Deputados)6 e n.º 5064/2023 (Senado Federal)7 avançarão nas Casas Legislativas. Tais propostas legislativas têm por objeto projetar os efeitos da anistia sobre os condenados pelos crimes cometidos no dia 8 de janeiro de 2023, beneficiando também o ex-presidente brasileiro. 

A anistia é a declaração, pelo Congresso Nacional, de que certos fatos passam a ser considerados impuníveis por motivos de utilidade social, incidindo, relevante salientar, sobre fatos jurídicos e não sobre pessoas determinadas. Trata-se do perdão, fruto de esquecimento ou apagamento (amnestia), de condutas delitivas, cuja consequência é a extinção da punibilidade dos agentes8. Em relação ao restabelecimento de direitos políticos, não se trata de consequência natural da anistia, devendo estar expressamente prevista em comando legal, a exemplo da Lei da Anistia decretada em 19799

A medida ainda estaria sujeita ao controle do STF, mas, caso votada e aprovada pelos congressistas brasileiros, se somaria aos crimes praticados durante os 21 anos de regime ditatorial brasileiro, representando mais um ato de omissão estatal na necessária responsabilização de agentes que atentam sistematicamente contra a nossa democracia. 

Sobre as expectativas de decretação de anistia para os atos atentatórios ao regime democrático no dia 08/01/2023 e de outros que se encontram no mesmo contexto golpista, é necessária uma distinção entre os momentos históricos presente e passado — especificamente em relação ao ano de 1979 — em cotejo com a finalidade do instituto jurídico-penal. 

Pois bem. A anistia, cuja aplicação destina-se a crimes cometidos por motivos políticos, tem como objetivo a pacificação social em períodos de acirramento entre diferentes matizes ideológicas presentes em determinado espaço e tempo. 

Sempre pontuando, a ampliação — indevida — da lei de 1979 considerou os graves crimes praticados por agentes públicos como delitos de natureza política em momento histórico no qual, é certo, vivia-se polarização ideológica e se consumaram atos de potencialidade delitiva por integrantes de ambos os grupos. 

Não foi o que se deu mais recentemente, poucos dias após a cerimônia de posse de mandatário eleito em pleito popular amplo, transparente, pacífico e ordeiro, em ambiente democrático, portanto. Resta inequívoco que os atos golpistas pretéritos e futuros ao 8 de janeiro não se enquadram na hipótese de pacificação social, tampouco têm utilidade pública, vez que ausente qualquer acirramento entre matizes ideológicas ou atos com potencialidade delitiva de ambos os polos ideológicos.  

Diferentemente, os inquéritos que ora vem a público revelam a presença de verve violenta e golpista levada a efeito por um único grupo que, em tempos de decantada democracia e respeito aos direitos inerentes à cidadania e aos direitos humanos, visou à deposição de governo legitimamente eleito e à abolição do estado democrático de direito, não havendo que se falar em anistia para tais fatos. 

Concluindo, é inegável a relevância da Lei da Ficha Limpa para o sistema político brasileiro, como necessário freio aos desvios de finalidade e violações à probidade e moralidade públicas e como forma de resguardo e garantia do Estado Democrático de Direito, contudo, é preciso atentar para o descabimento, nesta quadra da história político-institucional brasileira, da recorrentemente suplicada anistia, não só pelo status democrático e pacífico atual, mas, também, pela manifesta ausência de interesse público e social na medida.  

Florianópolis, 18 de dezembro de 2024
Palavras-chave: Ditadura, Anistia, Ficha limpa


Este artigo de opinião integra o Observatório Justiça e Democracia (OJD). Este conteúdo não expressa necessariamente a posição da ABJD sobre o tema exposto, sendo apenas a posição de seus autores.

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