Um balanço dos 9 anos do desastre crime da Samarco/Vale/BHP de Mariana ao litoral capixaba e baiano

04/12/2024

Um balanço dos 9 anos do desastre crime da Samarco/Vale/BHP de Mariana ao litoral capixaba e baiano


Por Artur Freixedas Colito 
Advogado popular, do Colegiado Nacional da ABJD, membro do coletivo de Direitos Humanos do Movimento dos Atingidos por Barragens. 
Por Fernanda de Oliveira Lage 
Assessora parlamentar, integra o Colegiado Nacional da ABJD e o Coletivo de Direitos Humanos do Movimento dos Atingidos por Barragens.

Se passou quase uma década desse que foi o maior desastre crime da história do Brasil, um crime socioambiental marcado pela busca incessante do lucro, mesmo que ao custo de vidas. 

O crime resultou em 19 mortes imediatas, danos imensos à saúde física e mental de dezenas de milhares de pessoas atingidas, morte de centenas de milhares de espécimes da fauna da Bacia do Rio Doce e litoral do ES e BA, além da perda do direito ao lazer e cultura ligados ao rio e a uso da terra às margens do rio. 

Ao longo da batalha pela reparação integral, as mulheres sofreram discriminação ao acessarem políticas de mitigação dos dano, o ex juíz responsável pelo caso, Mário de Paula, desrespeitou diversas vezes as normas do processo civil e coletivo, dezenas de lideranças e manifestantes foram processados pelas mineradoras e a Fundação Renova, que era uma marionete das poluidoras-pagadoras, gastou mais de 30 bilhões sem apresentar resultados satisfatórios à maior parte das comunidades atingidas. 

A falta de participação popular foi um marco nesses 9 anos. Alegando diversas razões, instituições de justiça, governos federais e estaduais capitularam à vontade das empresas de excluir qualquer representação direta das pessoas atingidas nas principais negociações sobre o futuro da região ou de quem sofreu com o crime. 

O capítulo mais recente foi a Repactuação de Mariana assinada no dia 25.10.2024, intitulado o "maior acordo ambiental da história" em valores, somatórias esses que serão pagos em parcelas por 20 anos. Acordo esse que foi finalizado às pressas, em meio ao início do julgamento do mesmo caso na Justiça Inglesa, numa ação coletiva envolvendo cerca de 600 mil pessoas atingidas, municípios, quilombos e povos indígenas. 

O caso também foi apresentado a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que em julho de 2023 disse que iria se pronunciar sobre a admissibilidade do caso, inclusive fazendo audiência sobre o tema em julho de 2024. 

No entanto, cabe ressaltar que diversas propostas dos movimentos populares, em especial do Movimento dos Atingidos por Barragens, se materializaram nesse acordo da Repactuação. 

Embora o movimento não tenha tido acesso ao acordo antes de sua divulgação pela imprensa, não tenha participado de sua negociação ou assinado o documento, a pressão popular e sensibilização dos atores públicos e do sistema de justiça garantiu que o desejo das comunidades atingidas fosse parcialmente incluído no acordo. 

Ressaltamos algumas conquistas dessa luta: 

  1. O Programa de Transferência de Renda, importante programa de mitigação, conquistado de forma pioneira no caso Brumadinho e que se tornou parte da Lei 14.755/2023 - Política Nacional dos Atingidos por Barragens (PNAB); 
  2. O Fundo para prevenção e reparação das Enchentes, pois os extremos climáticos atualmente expandem a contaminação e revitimizam as pessoas atingidas; 
  3. Fundo para Saúde das Pessoas Atingidas, que sofrem com alimentos e território contaminados pelos rejeitos da mineração que foram arrastados ao longo do leito do Rio Doce; 
  4. Fundo de Reparação para as Mulheres, que foram discriminadas ao longo do processo reparatório; 
  5. Continuidade das Assessorias Técnicas Independentes, outro direito assegurado na PNAB; 
  6. Fundo de Projetos Comunitários, semelhante ao que será implementado no caso Brumadinho. 

Povo em luta, rio de esperança 

Assim, ainda que sem participação popular efetiva, houve sinalizações importantes, que se bem executadas, poderão caminhar rumo à reparação integral. Cabe garantir transparência e meios de incidência para que seja possível o acompanhamento da execução do Acordo. 

No entanto, a falta de participação das atingidas, que foi um desrespeito à centralidade do sofrimento das vítimas, princípio assegurado pela CIDH e pela PNAB, também resultou em graves lacunas no acordo, que foram destacados por ofício da ABJD entregue ao ministro Luís Barroso no dia 05.11.24., um dia antes da homologação do acordo, vejamos: 

  1. Observância da Política Nacional de Atingidos por Barragens (PNAB) e da Política Estadual de Atingidos por Barragens do Estado de Minas Gerais (PEAB)

    A PNAB e a PEAB estabelecem diretrizes específicas para garantir a reparação justa, a participação ativa dos atingidos em todas as fases do processo e o respeito aos direitos sociais e ambientais. É essencial que o Acordo respeite e incorpore esses instrumentos normativos, garantindo, assim, que o processo seja pautado pela equidade e transparência.

  2. Observância da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)

    Considerando que várias comunidades atingidas se identificam como povos e comunidades tradicionais, é imprescindível que o Acordo respeite a Convenção nº 169 da OIT, garantindo o direito à consulta livre, prévia e informada, conforme prevê o tratado internacional.

  3. Situação das Trabalhadoras e Trabalhadores em Condição de Informalidade

    Muitas trabalhadoras e trabalhadores atingidos pelo desastre ambiental se encontravam em situação de informalidade, especialmente em setores como pesca, agricultura e comércio local. Para que esses trabalhadores não sejam excluídos dos processos de indenização, o Acordo deve contemplar mecanismos específicos que possibilitem a inclusão desses grupos, respeitando suas necessidades e características laborais.

  4. Exclusão Indevida das Comunidades Pesqueiras de Vitória, Vila Velha e Guarapari

    A ABJD considera injusta a exclusão das comunidades pesqueiras de Vitória, Vila Velha e Guarapari, uma vez que essas localidades sofreram e ainda sofrem com o impacto ambiental e econômico causado pelo desastre. É imprescindível que essas comunidades sejam devidamente incluídas nos programas de indenização e reparação.
     
  5. Exclusão Indevida dos Municípios do Sul da Bahia

    Destacamos, ainda, a importância de incluir os municípios do sul da Bahia, que, embora estejam geograficamente mais distantes, enfrentaram consequências socioeconômicas significativas devido ao impacto da lama no litoral. O Acordo deve garantir que os direitos dessas comunidades sejam respeitados e que elas sejam devidamente indenizadas pelos danos sofridos.

  6. Instituição de Mecanismos de Controle e Fiscalização dos Indeferimentos de Pedidos de Indenização

    Solicitamos que o Acordo institua mecanismos efetivos de controle e fiscalização dos indeferimentos de pedidos de indenização. É essencial assegurar que todas as decisões de negativa de indenização sejam devidamente justificadas e que os atingidos tenham o direito de contestar essas decisões.

  7. Cláusulas de Quitação do Programa Indenizatório Definitivo (PID)

    Por fim, a ABJD manifesta preocupação com as cláusulas de quitação relacionadas ao Programa Indenizatório Definitivo (PID), as quais podem limitar o direito de os atingidos buscarem reparações futuras caso os danos persistam ou novos impactos sejam identificados. Reiteramos a importância de que o direito de reparação integral seja garantido em sua plenitude, sem limitações ou renúncias que prejudiquem os direitos dos atingidos. 

Seguimos, portanto, vigilantes, sabendo que a reparação integral1, ainda figura em um horizonte distante, mas seguiremos acompanhando a execução desse acordo, defendendo a participação das pessoas atingidas, um novo modelo de governança e sobretudo, a superação deste modelo extrativista colonial, que em sua essência, é violador de direitos e atenta contra a soberania do nosso país.  

Águas para a vida! Não para a morte! 

1 Este é um conceito que advém da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e está sendo integrado à legislação brasileira, a exemplo da Lei Estadual 23.795/2021 de Minas Gerais. A Reparação Integral consiste na restituição, mitigação e reabilitação
dos danos, bem como na satisfação das vítimas e nas garantias de não repetição das violações de direitos.

Belo Horizonte, 6 de novembro de 2024
Palavras-chave: Mariana, Samarco, Direitos Humanos, Atingidos por Barragens 


Este artigo de opinião integra o Observatório Justiça e Democracia (OJD). Este conteúdo não expressa necessariamente a posição da ABJD sobre o tema exposto, sendo apenas a posição de seus autores.

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