Por Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, membro da Associação Juízes para Democracia (AJD) e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Estrelado por Jake Gyllenhaal, o filme “O Abutre” (Nightcrawler) é um romance ficcional que mergulha no submundo da reportagem policial sensacionalista e, com maestria, realça a inquietante falta de escrúpulos da manipuladora “mídia abutre” estadunidense. Por aqui não é muito diferente. Temos também a “mídia abutre” tupiniquim. Um “nada” jurídico, repetido à exaustão com imagens de tubulações despejando dinheiro, transforma-se no “maior escândalo de corrupção de todos os tempos”.
Fenômeno parecido se dá, mas com sinal trocado, no expediente “passapanista”, o famoso “abafa”, a forma mais cínica de desinformação. O que se constata é que a imprensa corporativa nacional, em seu papel inconfesso de testa-de-ferro do mercado, vem oscilando entre o “abutrismo” e o “passapanismo”.
Essa mídia comprometida com o “deus-mercado”, num estalar de dedos, é capaz de hipertrofiar eventos, criar falsos heróis e vilanizar seus adversários ideológicos. No momento seguinte, minimiza ou esconde aquilo que não lhe interessa mostrar. Como um sumo-sacerdote, oráculo da razão, é pródiga em exigir genuflexões dos que ousaram um dia questionar suas “verdades”.
Mas quando a história, cruel como deve ser, desnuda suas peraltices, manipulações e incoerências? Essa mídia comprometida, testa de ferro de interesses inconfessos, seria capaz de fazer algum tipo de “mea culpa”? Claro que não! Exceto por um calculado custo-benefício, aninhando-se num confortável “delay” de um punhado de décadas...
Pois agora os “jornalões” de sempre – que, como ninguém, representam a grande mídia corporativa – acionam o seu “modo periquito”. Uma variante colorida e estridente ao propósito “passapanista” (cujo estilo, em geral, é mais soturno e silencioso).
Depois que centenas de “bagrinhos” foram investigados, processados e condenados pelo Supremo Tribunal Federal por crimes de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado, sob farto noticiário contemplativo, eis que a macróbia “grande mídia” resolve estrilar. Agora que a persecução penal alcança os tubarões regentes da turba, a ordem é fazer barulho: convocam-se alguns especialistas (inclusive os “de estimação”) para “desvendar” – ou confundir – a configuração teórica daqueles mesmíssimos crimes.
Ora, os delitos em questão, especialmente os descritos nos artigos 359-L e 359-M, do Código Penal, têm em seu núcleo constitutivo o verbo auxiliar “tentar” (tentar abolir o Estado Democrático, tentar depor governo legítimo, respectivamente).
O próprio verbo auxiliar já estabelece o “intento”, o crime se configura com a “tentativa”. Tentar, intentar, tentativa. A consumação fática é dispensada pela norma por pura lógica: caso venha a ocorrer, o ilícito passa a ser impunível, porquanto o golpista exitoso jamais sofrerá punição de sua própria estrutura estatal, a qual obviamente legitimará seus atos passados.
Os manuais jurídicos apontam as fases dos crimes: cogitação, atos preparatórios, atos executórios, consumação, exaurimento... Nem todos chegam às fases da consumação e do exaurimento, e ainda assim podem ser puníveis; mas são de regra impuníveis, no Brasil, as condutas que não superam as fases da cogitação e dos atos de preparação.
Para a configuração da tentativa, há que se ingressar na fase de atos executórios (sem se chegar à consumação). É isso que os jornalões agora “descobriram”, em seu afã politiqueiro de reforçar o contraponto ao governo de momento. E que quando da punição dos “bagrinhos” não os incomodava. E é nisso que se confundem (ou procuram nos confundir), fazendo uma misturada tosca entre atos preparatórios e executórios.
Embora em hipóteses criadas em laboratório possa haver alguma dificuldade em definir se determinada conduta se insere em mera fase de preparação de um crime ou se já caracteriza o início da execução, não é definitivamente isso o que ocorre no caso da tentativa de golpe à Democracia (e ao governo eleito) que aqui se está a tratar. Aliás, é muito fácil – facílimo mesmo! – distinguir juridicamente essas balizas no caso concreto vivenciado no Brasil recentemente. A hermenêutica jurídica traz método banal para fazer esta distinção, alcançável por qualquer leigo. Inclusive os jornalões.
A forma mais simples de distinguir um ato preparatório de outro que dá início à execução é avaliar se a sua prática é capaz ou não de gerar algum perigo, ao menos próximo (ainda que não imediato), ao bem jurídico protegido. Mínimo que seja. No caso, risco à Democracia e a um governo legítimo. Essa é a teoria objetivo-material mais básica para guiar o intérprete. Se alguém, cogitando matar um desafeto que mora em outro país (fase da cogitação), compra uma bala de fuzil (ato preparatório), mas fica só nisso, não vai adiante, nem a arma possui, é óbvio que não responderá por tentativa de homicídio. A integridade física do desafeto jamais esteve efetivamente em risco. Mas se esse alguém compra o fuzil, a munição, contrata o “sniper”, monitora a vítima, prepara a tocaia, e um terceiro impede o pistoleiro de atirar na hora “h”, é óbvio que se estará diante de um crime em sua forma tentada, mesmo preservada a integridade da vítima.
Ainda do ponto de vista objetivo, nessa análise de risco, é recomendável que se pondere a relevância do bem jurídico sob proteção para fins de mensuração do quê seria um perigo tolerável. Quanto maior a relevância daquilo que se tutela, menor deve ser o risco tolerável.
No caso, o objeto da proteção da norma é “só” o Estado Democrático de Direito...
E nisso pode estar precisamente a chave para entender a “relativização” que a grande imprensa corporativa agora vem dando à punibilidade criminal de alguns tubarões quanto ao golpe em questão.
Não é difícil perceber que nossos jornalões, em sua defesa cega ao liberalismo econômico, seguem pródigos em relativizar os malefícios dos experimentos ditatoriais da ultradireita. Basta ver a forma dúbia pela qual tratam os espasmos neofascistas encetados em meio às bizarrices do tal Milei. Quem dera essa gente, disfarçada de “jornalista”, tivesse o mesmo apreço ao Estado Democrático de Direito que tem pela selvajaria econômica dita “liberal”!
De nada valeu a humilhação de ficar acurralada num “cercadinho” palaciano por quatro longos anos. Depois de se fartar de pipoca enquanto noticiava a condenação de centenas de bagrinhos, essa parcela da grande mídia teima em relativizar o valor da Democracia e as normas que a defendem, vitaminando teses e falsas equivalências em prol dos tubarões, seus próprios carrascos. Supondo-se ainda na versão abutre, a mídia-periquito, barulhenta e vistosa, segue alimentando o sonho de acasalar com seu predador.
É para ter “pena”?
Palavras-chave: Mídia, Desinformação, Democracia
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