Por Matteo Antonny C. do Nascimento
Graduando no curso de Direito no Departamento de Ciências Jurídicas (DCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador no Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção (CNPq).
O termo “constitucionalismo abusivo” foi desenvolvido por David Landau (2013, p.195)1 e consiste no “[...] uso de mecanismos de mudança constitucional, a fim de tornar um estado significativamente menos democrático do que era antes". Sendo assim, sua ocorrência se materializa em alterações constitucionais que, em tese, são legítimas, porém manipuladas para minar a autonomia dos Tribunais e do Executivo, assim como o equilíbrio entre os poderes, especialmente em democracias que dependem de um Judiciário independente para proteger a Constituição e os direitos e garantias fundamentais.
No presidencialismo, uma das formas de materialização do constitucionalismo abusivo consiste em ações do Legislativo que recorrem a cláusulas democráticas e a processos constitucionais formais com o objetivo de limitar o poder do Executivo (BARBOZA; FILHO, 2018). No contexto brasileiro, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ocorrido em 31 de agosto de 2016, que adveio de um processo iniciado pela Câmara dos Deputados, ao votar pela admissibilidade da denúncia, e remetido ao Senado Federal, responsável pelo julgamento, simboliza uma efetiva instabilidade democrática instaurada por uma parcela do Congresso Nacional comprometida com o retrocesso. Outro exemplo mais recente ocorreu durante o governo do Presidente Lula, em 2023, quando os parlamentares impuseram dificuldades à aprovação de projetos prioritários para o governo, como o arcabouço fiscal, engendrando a realização de negociações intensas com o Congresso, envolvendo concessões e ajustes no texto para garantir sua aprovação – apesar das evidentes necessidades relacionadas à reestruturação econômica, fundamentais para a estabilidade fiscal do país.
Tem-se, logo, uma democracia conduzida por “agentes do retrocesso” que, em diversas ocasiões e sob o manto da legalidade, empregam o extremismo e a concepção antidemocrática nas entranhas do Estado, além de promover o enfraquecimento gradual das instituições democráticas. O uso constante de mecanismos institucionais e jurídicos que manuseiam processos constitucionais, para além das contingências de instabilidade política e governamental, incide nos Tribunais, seja enfraquecendo-os ou interferindo na sua dinâmica interna.
Outrossim, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 28/2024, apresentada pelo deputado Reinhold Stephanes (PSD/PR) e outros, busca modificar a Constituição Federal de 1988 para estabelecer novos mecanismos de controle sobre decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela propõe a criação do artigo 97-A, que exigiria que liminares (decisões provisórias) sejam referendadas por um colegiado de ministros dos tribunais superiores. Ademais, prevê a possibilidade de sustar (suspender) decisões do STF por meio de atos legislativos, algo que tem gerado controvérsias sobre a separação dos poderes no Brasil.
Suspender uma decisão? Isso, claramente, é absurdo e fere a cláusula pétrea da separação dos poderes, como se prevê no art. 2° da CF/88.
De acordo com o texto, caso o Congresso “entenda” que o STF excedeu os limites de sua função de guardião da Constituição, poderá suspender a decisão por meio do voto de 2/3 dos membros de cada uma das casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), pelo prazo de dois anos, prorrogável uma única vez por mais dois anos.
Quais são os contornos técnicos, jurídicos e, principalmente, constitucionais que os parlamentares irão, caso institucionalizada, utilizar para definir os limites da esfera de atuação do Supremo?
A PEC 28/24 também prevê a inclusão automática, na pauta dos tribunais, de liminares solicitando que o colegiado revise decisões proferidas individualmente. De acordo com o autor da proposta, essa medida visa harmonizar os princípios constitucionais em questão. A proposta será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania quanto à sua constitucionalidade. Se admitida, será analisada por uma comissão especial e votada em dois turnos pelo Plenário da Câmara. Para ser efetivada, precisará ser aprovada também pelos senadores (Agência Câmara de Notícias).
Essa PEC está inserida no período posterior à liminar do Min. Flávio Dino, mantida em Plenário, que suspendeu todas as emendas impositivas apresentadas por deputados e senadores ao Orçamento da União até que o Congresso estabeleça normas que assegurem transparência na destinação dos recursos. Numa leitura contextual, ela representa uma retaliação ao STF.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, afirmou que a ideia é possibilitar “uma maior transparência e segurança jurídica ao sistema constitucional, sem interferir na função jurisdicional precípua do STF, mas aprimorando-a”.2 Será mesmo?
Desde o Governo Bolsonaro, há no imaginário social de diversos segmentos sociais, especialmente o da extrema-direita, a figura de “vilão” associado ao STF, isto é, o inimigo da sociedade. Sendo assim, essa perspectiva deturpada e fictícia é adotada por alguns congressistas que empreenderam uma verdadeira ofensiva contra o Supremo.
Nota-se que a articulação para o enfraquecimento do Supremo faz parte de um projeto mais amplo de reconfiguração do Estado brasileiro, no qual o Judiciário é visto como um obstáculo à implementação de determinadas agendas políticas.
As propostas como a PEC 28/2024 são, na realidade, reflexos de um contexto mais amplo de tensão entre os poderes, especialmente entre o Legislativo e o Judiciário, que se acentuou nos últimos anos. A retórica de "reformas" ou "aprimoramentos" do sistema jurídico, muitas vezes, oculta tentativas de subordinar o Judiciário aos interesses políticos momentâneos, fragilizando a independência das instituições. Nesse sentido, o STF tem sido alvo constante de ataques, seja por sua atuação em temas sensíveis que confrontam interesses políticos, seja pela sua função de garantir a prevalência dos direitos fundamentais, muitas vezes em oposição a políticas ou decisões do Legislativo.
Ato contínuo, essas manobras institucionais afetam a credibilidade das instituições brasileiras perante a sociedade e a comunidade internacional. A fragilização do STF, por meio de medidas como as propostas na PEC, enfraquece a confiança do público no sistema de justiça, aumentando a percepção de que os Tribunais estão vulneráveis às pressões políticas, assim como fomenta o sentimento de vilania direcionada a eles.
O constitucionalismo abusivo, nesse cenário, se manifesta na criação de emendas e leis que, embora apresentem conformidade com o processo constitucional formal, visam minar o equilíbrio entre os poderes. O uso de mecanismos institucionais para retaliar decisões judiciais que não são favoráveis ao Legislativo é um exemplo claro disso. No caso da PEC 28/2024, a possibilidade de o Congresso suspender decisões do STF é vista como um atentado ao princípio da separação dos poderes, previsto na Carta Magna. Por fim, ao permitir a suspensão de decisões judiciais, cria-se um precedente perigoso para a erosão do papel contramajoritário do Judiciário, que é essencial em qualquer democracia constitucional contemporânea.
1 LANDAU, David, Abusive Constitutionalism (April 3, 2013). 47 UC Davis Law Review 189 (2013); FSU College of Law, Public Law Research Paper No.
2 “Lira defende PEC que limita decisões do STF, em manifestação após pedido de Nunes Marques” Portal UOL, 22 de outubro de 2024. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/10/22/lira-defende-pec-que-limita-dec. Acessado em: 23.10.2024.
12 de novembro de 2024.
Palavras-chaves: Constitucionalismo, Democracia, Judiciário.
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