Caso Fábio Escobar - A Banalização da Morte e a Deterioração do Estado Democrático de Direito em Goiás

28/08/2024

Caso Fábio Escobar - A Banalização da Morte e a Deterioração do Estado Democrático de Direito em Goiás


 Por Camilo Bueno Rodovalho, Lucas Cardoso de Oliveira e Mauro Rubem de Menezes Jonas 1

O caso que temos diante de nós é um show de horrores que se desenrola no palco goiano, onde a vida humana parece ter se tornado um mero adereço descartável na trama em que poder e violência se entrelaçam de forma indissociável. A morte de Fábio Alves Escobar Cavalcante, em junho de 2021, em Anápolis/GO, é apenas o ponto de partida de uma sequência de eventos que revelam, de maneira nua e crua, a corrosão de princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. 

A emboscada que vitimou Escobar não foi um evento isolado. Pelo contrário, foi o catalisador de uma série de homicídios, numa tentativa desesperada de acobertar o crime inicial. Entre as vítimas, uma mulher grávida de sete meses, cujo assassinato reforça o desprezo abissal pela vida humana por parte dos envolvidos. O mandante do assassinato de Escobar, ao que tudo indica, é Carlos Salustiano Alves de Toledo, o "Cacai", uma figura que transita com desenvoltura entre os corredores do poder, ex-presidente do Democratas e atual União Brasil em Anápolis, e ex-diretor da Companhia de Desenvolvimento Econômico do Estado de Goiás (CODEGO). 

Fábio Escobar, em um momento de desespero que denota sua consciência do perigo iminente, buscou auxílio diretamente com o governador Ronaldo Caiado. Em mensagens que constam na ação penal sobre o ocorrido, manifestou seu temor em relação a Jorge Luiz Ramos Caiado, primo do governador que não é um mero figurante nesta narrativa; ele seria o facilitador que, segundo consta, intermediou o contato entre Cacai Toledo e os policiais militares supostamente responsáveis pela execução de Escobar. A influência de Jorge Caiado sobre uma fração significativa da Polícia Militar de Goiás (PMGO) é um componente essencial na trama, destacando como a corrupção e o abuso de poder se entrelaçam de forma inextricável. 

O pedido de proteção de Escobar, feito através do WhatsApp, é uma súplica que acentua a sordidez do enredo. E o que fez o governador diante de tal clamor? Aparentemente, o ignorou com uma indiferença glacial, em claro gesto de omissão criminosa. 

A retaliação contra aqueles que ousaram desafiar o silêncio imposto foi rápida e implacável. Os coronéis Newton Nery de Castilho e Benito Franco Santos, que prestaram depoimentos cruciais no Ministério Público, viram-se rebaixados de suas posições, um castigo exemplar para aqueles que ousam falar a verdade. O novo comandante-geral da Polícia Militar, em um gesto de obediência servil, não esperou sequer a cerimônia de posse para editar as portarias que relegaram os corajosos oficiais e suas famílias a funções subalternas. 

A Operação Negociatas, que inicialmente investigava corrupção na CODEGO, acabou por lançar luz sobre as conexões sombrias entre o poder político e a criminalidade. A prisão e exoneração de Cacai Toledo em julho de 2020 foram apenas o prelúdio de um escândalo que, como um tumor maligno, se espalhou para revelar as entranhas podres de um sistema corrompido. O compartilhamento do conteúdo da quebra de sigilo telefônico de Cacai Toledo utilizado na investigação da morte de Fábio Escobar, é uma prova irrefutável da profundidade da degradação moral que permeia nossas instituições. 

Entre os dezoito policiais investigados por sua participação na operação que resultou na morte de Escobar e outras sete pessoas, nove foram promovidos por atos de bravura durante o governo de Ronaldo Caiado. Ora, que bravura é essa que se confunde com barbárie? Promover assassinos travestidos de heróis é uma afronta escandalosa à justiça e à decência. 

A disseminação das atividades de inteligência na Polícia Militar, invadindo competências da Polícia Civil, é outro capítulo desta triste saga. Ferramentas invasivas foram utilizadas sem a devida autorização judicial, num desprezo absoluto pelas garantias constitucionais. O acesso indiscriminado aos dados dos cidadãos, como evidenciado pelo uso de uma senha compartilhada para investigar Escobar, é um sinal alarmante de que a privacidade se tornou para o Estado de Goiás um capricho irrelevante. 

Ademais, as investigações revelam a utilização do aparato de segurança pública, notadamente por meio da mobilização de policiais militares, para a consecução de fins políticos e pessoais. Este desvio grotesco de finalidade compromete a imparcialidade e a eficácia do sistema de segurança. Em particular, houve a suposta utilização de agentes de segurança pública para a perseguição e eliminação de opositores políticos do Governador Ronaldo Caiado. A manipulação de recursos públicos para satisfazer interesses particulares constitui uma prática que avilta os princípios democráticos fundamentais e configura um abuso de poder inaceitável. 

Não podemos deixar de mencionar o episódio de junho de 2020, quando um áudio comprometedor de Jorge Caiado veio a público. Nele, Jorge, em termos vulgares, acusava o então Secretário de Segurança Pública de interceptar suas ligações telefônicas e o ameaçava. Em resposta, o Secretário foi temporariamente afastado de suas funções, ostensivamente para permitir uma investigação imparcial. Posteriormente, o Secretário foi reintegrado ao cargo após a conclusão das investigações. No mês seguinte, Cacai foi preso, e os dados capturados em seu celular têm se mostrado fundamentais na investigação do assassinato de Fábio Escobar e das outras pessoas assassinadas na trama. 

Outro ponto nevrálgico é a aquisição dos produtos da empresa israelense Cognyte pelo Governo de Goiás. Reportagens revelaram que o governo contratou a empresa pelo valor de R$ 7,6 milhões para a aquisição de uma solução de interceptação telefônica, o famigerado First Mile. Este dispositivo permite monitorar a movimentação de qualquer pessoa usando um telefone celular, sem a necessidade de autorização judicial. A falta de transparência na aquisição e uso deste equipamento, classificado como "reservado" pelo delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, suscita questões sérias sobre a legalidade e a moralidade de tal vigilância. 

Embora este dispositivo tenha levantado preocupações significativas sobre a vigilância e o direito à privacidade, seu uso específico no caso de Fábio Escobar não está claramente estabelecido. No entanto, a prática de monitoramento e perseguição de opositores políticos, como evidenciado no assassinato de Fábio Escobar, sugere um padrão de abuso de poder e de recursos públicos para fins pessoais e políticos. No caso de Escobar, o monitoramento de seus movimentos e atividades pessoais parece ter sido realizado por métodos mais tradicionais, como a vigilância direta ("carrapato"), mas a existência de tecnologias avançadas como o First Mile destaca a capacidade potencial para tal abuso. Este contexto mais amplo sublinha a urgência de uma investigação rigorosa sobre o uso de tais tecnologias no Estado de Goiás. 

A sugestão de venda casada do First Mile com outro produto - que permite interceptar comunicações e interferir no telefone do alvo - é um assombroso indicativo de que a vigilância estatal se tornou uma ferramenta de repressão, violando direitos humanos fundamentais. A falta de clareza sobre os critérios de uso e a supervisão destas ferramentas amplifica o temor de que tecnologias possam ser empregadas para a vigilância indevida de cidadãos e opositores políticos. 

Um Espetáculo de Hipocrisia e Desrespeito à Democracia 

Diante desta sombria tapeçaria de ignomínia e desprezo pelos valores democráticos, devemos lançar um olhar atento e crítico sobre as intrincadas relações de poder e violência que permeiam o estado de Goiás. O caso Fábio Escobar não é apenas um retrato lamentável de uma série de homicídios brutais; ele é, sobretudo, um símbolo da degradação institucional que corrói as fundações do Estado Democrático de Direito. 

A tentativa frustrada do Deputado Mauro Rubem de instaurar uma CPI da Segurança Pública e da CODEGO, com apenas sete das treze assinaturas necessárias, revela a extensão do medo e da conivência que assolam as instituições do Estado de Goiás. A recusa em investigar as profundezas desse abismo de corrupção e violência é uma clara demonstração de que as estruturas do poder estão comprometidas, incapazes de cumprir seu papel de guardiãs da justiça e da legalidade. 

O que se apresenta diante de nós é uma situação de tal gravidade que exige uma resposta contundente e enérgica da sociedade civil. A impunidade e a manipulação do aparato estatal para fins pessoais são práticas que minam a legitimidade das instituições e destroem o tecido social. Neste contexto, não podemos deixar de afirmar que a luta pela democracia e pelo Estado de Direito não é uma mera abstração teórica, mas uma necessidade premente e vital. 

É imperativo que, como defensores da liberdade e da justiça, nos posicionemos firmemente contra essas práticas corruptas e nefastas. A justiça, mesmo que tardia, deve triunfar sobre a escuridão da impunidade e da corrupção. Não podemos tolerar que a conivência perpetue o abuso e o desrespeito aos princípios fundamentais que regem nossa sociedade. 

Camilo Bueno Rodovalho é advogado, Assessor Parlamentar, Pós-graduado em Direito Empresarial pela FGV-SP, Membro do Colegiado Nacional da ABJD e Coordenador da ABJD – Núcleo Goiás. Mauro Rubem de Menezes Jonas é Deputado Estadual, Odontólogo, Especialista em Saúde Público pela Universidade Federal de Goiás e Fiocruz, e Líder da Bancada do PT e Presidente da Comissão de Cultura, Esporte e Lazer na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás. Lucas Cardoso de Oliveira é Advogado, Assessor Parlamentar, Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás. 


Goiânia, 28 de agosto de 2024. 
Palavras-chave: Segurança Pública, Democracia, Corrupção


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