Newton de Menezes Albuquerque
Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro da Coordenação Estadual do Núcleo Ceará da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD-CE)
O lançamento do livro “Duas Fotos” de Marcelo Semer, constitui-se marco literário de uma época dramática do Brasil. O título alude à construção da imagem de um tempo, ainda não resolvido, em que a exceção no âmbito do direito e da vida social tornou-se usual entre nós. Trata-se não somente de mais uma publicação de autor pujante, reconhecido por seus talentos variados — sobressaindo-se, no caso, o inegável talento literário — mas, sobretudo, pela capacidade invulgar de juntar o sólido conhecimento do direito ao talento artístico, conferindo existência a pessoas, figuras fictícias tão ou mais reais do que a realidade. O romance revisita o clima de assunção e queda da Lava-jato, operação político-jurídica de exceção em nosso país, de profundo impacto no passado recente, cujos efeitos ainda se fazem sentir no presente e no futuro, ainda aberto, de nossa democracia. Estávamos carecidos de um tratamento estético-literário desse período que fosse capaz de costurar a dimensão objetiva, factual da história do país, com as vivências subjetivas experimentadas, com todos os travejamentos de nossa personalidade social, marcada por uma cultura autoritária e castradora. Enfim, precisávamos de um romance que nos traduzisse como democracia tenra e frágil, herdeira de uma sociedade brutalmente desigual e, ao mesmo tempo, envolta num torvelinho institucional dos mais intrincados, mormente em relação a um Sistema de Justiça marcado pela fragilidade de autonomia funcional e pela distância de exercício de responsabilidades constitucionais, nele depositadas.
Diria mesmo que é uma tarefa nada fácil escrever preso ao impressionismo de eventos recentes, pouco sedimentados em seus contornos. “Duas Fotos”, neste aspecto, já se prenuncia como obra exitosa, por agregar o thriller peculiar dotado de ritmo, estilo e forma impecáveis que nos captura, prende o fôlego, atiça a imaginação, aferrando-nos às suas páginas, com competência pedagógica singular em elucidar conceitos, categorias e realidades próprias do direito. Tudo isso compondo unidade de enredo admirável, onde fatos e discursos desdobram-se com naturalidade, em obra de ourives raro no manejo da palavra, a narrativa ágil e inteligente. Afinal, considerada a complexidade do mundo jurídico e de sua retórica, faltam-nos juristas que estabeleçam uma interlocução com a sociedade, influindo sobre o senso comum, notadamente quando o direito ganha ares de instrumento ordinário da sociabilidade contemporânea. Marcelo Semer, em várias passagens do livro, une a virtuose do grande jurista, professor, com a maestria do manejo eufônico do verbo.
É, portanto, um livro imprescindível este, obra artística referencial de uma epocalidade entrincheirada entre o drama atroz e a comicidade ridícula de uma sociedade autoritária, crente em mitologemas de um moralismo perverso. Igualmente notável, ainda, por efetuar síntese densa do vivido nos espaços institucionais e sociais. Lembra assim que a justiça nunca se exaure em suas possibilidades, aberta que é à dicção dos variados e legítimos intérpretes. A presunção dogmática dos arautos da ordem totalitária neoliberal/protofascista de estabelecer unívoca leitura do direito por meio de paralogias “éticas”, mostra-se estreita, pouco condizente com o funcionamento de uma sociedade pluralista e hiperdiferenciada. “Duas Fotos” tematiza a agonística desse conflito; repassa em viés literário as hermenêuticas jurídicas em confronto de um país necessariamente polarizado entre “os de cima”, sedentos por uma ordem punitivista, persecutória aos trabalhadores pobres e suas lideranças; e os “de baixo”, favoráveis a um direito consentâneo com o metabolismo das ruas, praças e construções, em fina sintonia com a potência democratizante da Constituição de 1988. A Lava-jato; o golpe de 2016 e a assunção da necropolítica e do necrodireito não foram fatos episódicos de nossa história, mas sim perseveranças da razão senhorial, que intenta subjugar pela lógica rediviva do direito colonial.
Esse romance bem escrito e conjugado apresenta personagens e diálogos consistentes, com vida própria e fluidos no evolver de suas estórias/histórias. Sublinhe-se, de passagem, o prazer leitoral de verificar a presença de personagens e de acontecimentos identificados com a nossa Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), reverberando o compromisso visceral e pujante desta, na defesa do Estado Democrático de Direito. Sentimos orgulho de sermos parte dessa história, de ultrapassarmos a crônica eventual dos afazeres. É reconfortador estar do lado certo da história, nos reconhecer nessas páginas emblemáticas de período histórico singular, agindo com destemor na defesa da democracia e das garantias do Estado de Direito. Também por isto, o livro nos faz imergir nos acontecimentos de período conturbado da crise nacional, com seu espectro de desafios políticos, culturais, econômicos e jurídico, e refletir sobre o tamanho dos desafios postos a quem luta pela construção da cidadania no Brasil. Até porque estamos cientes de que o ciclo inaugurado pelo lavajatismo, infelizmente, ainda não se fechou. O conflito entre adeptos da democracia e autoritarismo, avanço e retrocesso, segue definindo o script dos atores políticos e sociais. Para superarmos as ameaças de toda ordem a pairar sobre nossas existências, portanto, faz-se indispensável conhecer os meandros do que significou o lavajatismo. Notadamente acerca das sobrevivências do “decisionismo” de exceção, renitente no Sistema de Justiça brasileiro, no anacronismo de leis, códigos e formulações institucionais antinômicos, frente ao sentido democrático inscrito na Constituição de 88. “Duas Fotos” desvela a insuficiência do direito gestado em nossa ordem judiciária, seja no que se refere à formação de juristas, presas de um dogmatismo ahistórico e infenso às demandas “dos de baixo”, como tais insensíveis a raciocínios substantivo-teleológicos. O painel amplo suscitado pela narrativa flagra com acuidade os graves desvios da dinâmica jurídica nacional, muito aquém das expectativas de uma nação cinzelada pela exclusão, pobreza e colonialidade, com incipiente consciência de nosso significado no mundo.
“Duas fotos” é, portanto, desde já referência bibliográfica imperativa para atinar com as causas que conformaram a Lava-jato. Leitura imprescindível para estudantes, professores de Direito, mas, sobretudo, para cidadãos em geral. Não podíamos aqui deixar de lembrar de personagens exemplificativos dessa teia narrativa: Camilo, professor com verve de tribuno, estremunhado pelo sentido genuíno de justiça; Maria, com suas dúvidas dos caminhos a seguir, sem desmerecer os demais, são luminosas existências de um momento histórico prenhe de lutas, dúvidas e indeterminações. Até os personagens menores, medíocres peças de engrenagem do lavajatismo como Evilásio e outros, também guardam contradições, evocam e explicitam nuances, de nossa época de vilezas e heroísmos. Digna de menção a cena de arremate do romance em plena Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, em que os personagens centrais da trama, Maria e Camilo, encerram o enredo com o desvelar de novos tempos de retomada da democracia, inspirados no “Princípio Esperança”. Marcelo Semer segue com maestria seu dom de criador, lançando vistas renovadas sobre a história recente do Brasil, para descobrir que, mesmo em meio a tantas cruezas, sofrimentos, desatinos e infortúnios, nem tudo está perdido. Enquanto houver possibilidade de Camilos, Marias e tantos outros em busca da autenticidade da justiça, da efetiva democracia, o Brasil terá jeito, terá presente e futuro por fazer. Convido-os à aprazível leitura de “Duas Fotos”, para que partilhemos a crença nas possibilidades redentoras da literatura, a servir de inspiração de nossa ação, no vigor de continuidade desse nosso romance coletivo, chamado de Constituição.
Fortaleza, 12 de julho de 2024
Palavras-chave: democracia, personagens, história
Este artigo de opinião integra o Observatório Justiça e Democracia (OJD). Este conteúdo não expressa necessariamente a posição da ABJD sobre o tema exposto, sendo apenas a posição de seus autores.