A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), reafirma seu compromisso com a proteção dos direitos humanos e manifesta apoio à Resolução Conanda nº 258/2024. Esta normativa estabelece um fluxo de atendimento para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no âmbito do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) e é vista como uma resposta urgente aos alarmantes índices de violência sexual que afetam esse grupo no Brasil.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 revelam uma realidade alarmante: a cada minuto, seis estupros são registrados no país, com vítimas predominantemente meninas negras, muitas vezes dentro de seus lares. Além disso, informações da Rede Feminista de Saúde apontam que, em 2023, 13.909 nascidos vivos foram de meninas com menos de 14 anos. A ABJD destaca que isso evidencia não apenas o descumprimento da legislação vigente, que considera qualquer ato sexual com menores de 14 anos como estupro presumido, mas também a violação dos direitos fundamentais dessas crianças.
A Resolução Conanda nº 258/2024 visa estruturar o atendimento a essas vítimas, garantindo que crianças e adolescentes tenham acesso ao abortamento legal quando necessário. A ABJD defende que a Resolução está em total conformidade com a Constituição Brasileira e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), assegurando prioridade ao bem-estar das vítimas em situação de violência.
A organização ressalta que a Resolução não só respeita o marco legal brasileiro, mas também busca eliminar as barreiras que muitas vezes dificultam o acesso a serviços essenciais, incluindo a informação sobre saúde sexual e reprodutiva. A discussão pública em torno da Resolução também abordou a questão do consentimento e da presença de responsáveis legais, temas que a ABJD afirma serem de vital importância considerando o contexto de violência intrafamiliar.
A ABJD reitera que a Resolução não introduz novos dispositivos, mas regulamenta direitos já consagrados, reforçando o compromisso de proteger a saúde e os direitos das crianças e adolescentes no Brasil. A organização conclama todos os setores da sociedade a apoiarem a Resolução Conanda nº 258/2024, uma medida necessária para enfrentar a crescente violência sexual e garantir um futuro mais seguro para as crianças do país.
Leia abaixo a Nota Técnica na íntegra:
NOTA TÉCNICA DE APOIO À RESOLUÇÃO CONANDA Nº 258/2024
A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), organização de caráter nacional fundada em 2018 que reúne todas as categorias de juristas em defesa da democracia e dos direitos humanos manifesta-se em apoio à Resolução Conanda nº 258/2024, que dispõe sobre o fluxo de atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no âmbito do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), por sua absoluta legalidade e urgência.
A Resolução Conanda nº 258/2024 busca responder aos alarmantes índices de violência sexual e gravidez na infância apontados pelos dados mais recentes. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, por exemplo, identificou seis estupros por minuto no Brasil, sendo que as vítimas são majoritariamente meninas negras, estupradas dentro de seu seio familiar. Também em 2023, dados da Rede Feminista de Saúde retirados do DATASUS exibiram 13.909 nascidos vivos de meninas com menos de 14 anos.
Esses dados ficam ainda mais alarmantes se observados pela perspectiva de que, no Brasil, a lei e a jurisprudência consideram qualquer ato sexual com pessoa menor de 14 anos como estupro presumido; e, ainda, de que, desde 1940, o aborto é legalizado nos casos de gestação decorrente de violência sexual. Isso significa dizer que não só a lei e a jurisprudência brasileira não estão sendo cumpridas como também essas crianças e adolescentes, que têm direito à desfrutar de sua infância com absoluta prioridade, nos termos da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente, estão encontrando obstáculos para acessar seus direitos mais básicos.
Não são raros os casos de meninas vítimas de violência sexual e, adicionalmente, violência institucional, quando buscam pelos serviços públicos de atenção a seu caso. Sofrem revitimização do momento que decidem denunciar a violência ao momento de conseguirem, de fato, acessarem o serviço de aborto legal – quando o conseguem. Basta lembrar dos casos das meninas de Santa Catarina, do Espírito Santo, do Piauí e, mais recentemente, de Goiás.
Em face desse cenário é que a ABJD considera de extrema importância e pertinência os esforços do Conanda na edição e aprovação da Resolução nº 258/2024, que tem justamente por objetivo organizar o fluxo de atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual pelo SGDCA em casos de gestação na infância.
E a Resolução é absolutamente constitucional e legal.
Primeiro, porque atende ao mandamento constitucional do art. 227, que determina o tratamento da criança e do adolescente com absoluta prioridade. Assim sendo, a Resolução regulamenta o fluxo de atendimentos dos serviços do SGDCA, como é de sua competência regulamentar (artigo 2º, I, da Lei 8.242/1991), sem adicionar ou retirar nada da legislação brasileira vigente. Isto é: a Resolução dá suporte à garantia do aborto legal nas três situações já previstas em lei, buscando eliminar barreiras que comumente são impostas para impedir o acesso ao procedimento.
Dentre esses obstáculos e entre uma das principais questões postas no debate público sobre a Resolução está a possibilidade de que crianças e adolescentes recebam informações e acessem o serviço de saúde independentemente da presença de seus responsáveis legais. Muito tem se dito a respeito da suposta impossibilidade de acesso à informação sobre o direito ao aborto legal ou ao procedimento em si em decorrência da incapacidade prevista pelo Código Civil.
Os argumentos que visam negar o direito de acesso à informação sobre o aborto legal e outras informações de saúde reprodutiva às crianças e adolescentes bem como o direito de terem suas opiniões levadas em conta em decisões sobre sua saúde ignoram, contudo, os índices de violência intrafamiliar no Brasil e o disposto ECA e na Convenção sobre os Direitos da Criança, que reconhecem crianças e adolescentes como sujeitos de direitos capazes de participar das decisões relacionadas a sua saúde, respeitando sua idade e maturidade e garantindo que seus interesses prevaleçam sobre interesses externos. Esses instrumentos também estabelecem que o poder familiar deve ser exercido conforme o melhor interesse das crianças, impedindo que seja utilizado para restringir o acesso a direitos fundamentais e procedimentos urgentes, sob pena de responsabilização dos responsáveis.
Ainda, a Convenção sobre os Direitos da Criança e o ECA asseguram a autonomia progressiva das crianças, permitindo que pais ou responsáveis legais ofereçam suporte conforme as capacidades e o melhor interesse delas.
Daí porque a análise da incapacidade civil, prevista no Código Civil, deve levar em conta esses instrumentos e notar que a incapacidade ali disposta se refere apenas à esfera patrimonial e negocial, não afetando direitos fundamentais, como o direito à saúde. Isso é especialmente relevante quando se trata do direito ao aborto legal, uma vez que a continuidade de uma gestação decorrente de violência sexual resulta em impactos graves e permanentes para a saúde física, mental e social das crianças.
Portanto, a incapacidade patrimonial e negocial não impede que as crianças exerçam direitos indisponíveis - dos quais não se pode abdicar ou restringir injustificadamente -, como o direito à saúde, especialmente quando suas decisões visam o seu bem-estar e estão em conformidade com seus melhores interesses. Mesmo que houvesse contrariedade, o Código Civil é inferior à Convenção sobre os Direitos da Criança, que tem status supralegal e prevalece sobre as leis federais, conforme decisões do STF (HC 95.967 e RE 466.343).
Finalmente, o Ministério da Saúde, no Marco Legal de Saúde para Adolescentes (2007), estabelece que o direito à saúde deve ser garantido sem restrições, entre estas entendida a exigência de presença de responsáveis. Se a comunicação com responsáveis prejudicar o bem-estar da criança ou adolescente, a intervenção médica deve ser imediata, e a criança ou adolescente pode indicar outra pessoa para assisti-la. A Norma Técnica de 2011 reforça que, quando a criança ou adolescente tem discernimento, a comunicação com responsáveis pode ser dispensada, assegurando seu direito ao sigilo.
É dizer: a Resolução do Conanda não inovou em nada em relação ao ordenamento jurídico brasileiro, mas tão somente dispôs sobre direitos convencionais, constitucionais e legais para regulamentar o fluxo de atendimento do serviço de saúde em caso de crianças e adolescentes gestantes em decorrência de violência sexual, dentro dos estritos limites de sua competência deliberativa e regulamentar.
Outra questão que tem feito parte do debate público sobre a Resolução Conanda nº 258/2024, sem razão jurídica, é a acusação de que a normativa é parcial e induz crianças e adolescentes à realização do aborto legal unicamente porque não faz menção à possibilidade de manutenção da gestação para entrega protegida prevista no ECA.
Acerta a Resolução, contudo, ao não trazer a referida menção. Isso porque a previsão do ECA se dá em um contexto de proteção à criança posta à adoção, em casos de mães ou gestantes adultas. A gestação na infância, contudo, não é tratada pelo ECA, justamente porque demanda um arcabouço normativo específico, não se podendo tratar da gestação e parto de crianças e adolescentes para entrega à adoção, ignorando-se o risco à sua saúde física, mental e social que tal cenário significa para a criança ou adolescente que está gestante em decorrência de uma violência sexual.
A edição e aprovação da Resolução pelo Conanda, portanto, atendem à necessidade de enfrentamento dos índices alarmantes de violência sexual e maternidade na infância no país, cumprindo com seu dever legal de regulamentar questões relativas aos direitos das crianças e adolescentes.
Pelas razões expostas, manifestamos nosso integral apoio à Resolução Conanda nº 258/2024.