Nuredin Ahmad Allan, advogado, integrante da executiva nacional da ABJD e de ascendência palestina comenta o conflito entre Israel e Hamas trazendo elementos que vão além dos comumente explorados pela mídia hegemônica. A entrevista foi realizada pela advogada Carol Proner, doutora em direito internacional, que tem alertado para a deterioração das garantias humanitárias na faixa de Gaza e os riscos de um novo paradigma de violência para todo o mundo.
Carol Proner - Qual a sua relação de ascendência e familiar? Você possui familiares em Gaza ou na Cisjordânia? Conhece pessoas em situação de risco?
Nuredin Ahmad Allan - Eu tenho parentes (na linha paterna) que ainda moram na Palestina. São em sua maioria primos. Meu pai nasceu na Palestina e imigrou para o Brasil em 1956. Tenho também amigos, descendentes de palestinos que nasceram no Brasil, mas, na vida adulta se mudaram para a Palestina. Moram, em maioria, em região próxima à cidade de Jerusalém, uma cidade chamada Anata. Por isso, pela proximidade de Jerusalém o risco bélico é reduzido, mas sofrem todo o tipo de limitação, restrição e de maus tratos, por serem palestinos. Não podem entrar em Jerusalém e visitar os seus templos sagrados, por exemplo. Porque há dias que são proibidos de acessar a cidade. A liberdade de movimentação é reduzida, por serem palestinos. A oferta de emprego é diferente, por serem palestinos. Não podem, em regra, construir ou melhorar a urbanização das regiões que moram, por serem palestinos.
CP - Entendo que não há como justificar a violência, mas também não é suficiente embarcar na polarização do terror ou, como prevalece no pensamento único da imprensa ocidental, condenar o Hamas como grupo terrorista. Na sua opinião, como devemos contextualizar a análise do conflito? É possível deixar a história de lado e focar apenas nos últimos dias? É possível impor a narrativa do marco zero e ignorar os 75 anos de conflito?
NA - De acordo com a imprensa ocidental, como regra, há exceções de cobertura, parece que o conflito se iniciou com o ataque do Hamas. É evidente que nada pode justificar a violência e a morte de inocente, mas é preciso entender a origem do conflito. O povo palestino é tratado, é sempre foi, como uma sub-raça pelo estado de Israel. Os palestinos, mesmo fora da Cisjordânia ou da Faixa de Gaza, vivem com limitações em todos os sentidos. Desde a mobilidade, a oportunidades de empregos. É uma vida vigiada, sem autonomia e, em muitos casos, com uma gradativa escala de retirada da esperança.
CP - Percebemos no discurso do Secretario de Estado Anthony Blinken, uma espécie de aviso aos navegantes quanto a condenar o Hamas como grupo terrorista e adensar o discurso contra o terror que aparece no 11 de setembro. O Brasil, em especial a partir do discurso do Presidente Lula, tem agido diplomaticamente de forma cautelosa. Como você vê a postura do Brasil?
NA - A postura do governo Lula neste caso me parece perfeita. A discussão binária apenas interesse a quem se encontra na condição de poder, no caso do Estado de Israel, e tende a elevar os conflitos. Todos os palestinos que conheço querem a paz. A autoridade Palestina já reconheceu o Estado do Israel. Quer viver em paz. Quer que seu povo possa ter tranquilidade e que suas crianças possam crescer olhando para o futuro, com esperança e sem enterrar seus mortos, decorrentes dos ataques bélicos e desproporcionas do estado de Israel.
CP - A ONU não hesitou em condenar a resposta violenta e indiscriminada de Israel sobre Gaza. Ignorando completamente qualquer recomendação humanitária, Israel tem usado práticas de extermínio contra a população que vive em Gaza, assumindo a possibilidade de “eliminar” inclusive os próprios reféns. E temos acompanhado o envio de ajuda militar dos EEUU a Israel e as mensagens ameaçadoras para o resto do mundo. O que finalmente está acontecendo a propósito deste conflito? Você acredita na versão de que a “falha” no sistema de segurança israelense pode ter sido proposital, um pretexto?
NA - É um tema delicado. A violência de Israel com o povo palestino ocorre há décadas. A Faixa de Gaza e a Cisjordânia sofrem todo o tipo de violação humanitária. Eles vivem uma guerra diária desde sempre. A imprensa ocidental jamais trouxe a público a realidade do cotidiano de uma criança nessas áreas. São situações de comoção absoluta. Há uma constante luta para acessos básicos, como escolas, por exemplo. Sobre a questão interna, sabemos que há muitos conflitos internos dentro do grupo político que comanda Israel. Eu não duvidaria. Quem conhece a realidade do povo palestino, não duvide de nada, em se tratando de Israel.
CP - Independentemente de uma estratégia geopolítica, sabemos que a unipolaridade bélica, jurídica e econômica dos Estados Unidos, exercida em aliança com Israel, tem sido contestada em múltiplos níveis. Você acredita que, apensar do sofrimento do povo palestino e do preço desumano deste conflito, há esperanças para o povo palestino de uma vida livre de Israel e de seus crimes reiterados?
NA - É a pergunta dos tempos modernos. Talvez nenhum outro conflito “na periferia internacional” seja tão desproporcional e assimétrico. Quando um judeu morre, centenas ou milhares de palestinos são encarcerados. Hoje há quase 2 mil palestinos presos por “prisão administrativa”. Ninguém sabe o motivo. Violações acentuadas de direitos humanos. A Faixa de Gaza é um gueto. Talvez pior dos que aqueles que os nazistas preparavam aos judeus. É incrível como ao olharmos para o passado vemos o estado de Israel criar instrumentos de repressão iguais aos que o seu povo tanto sofreu e que conquistou a solidariedade mundial, ao ponto de criarem um estado dentro da Palestina, mesmo sem a permissão ou a consulta ao povo palestino. Eu acredito sempre na paz, mas onde há injustiças extremas, sempre é muito difícil alcançar a paz. A ação de Israel sempre se pautou em injustiças, desde a forma como o estado foi criado. Mas ele foi, e a autoridade Palestina o reconheceu. Quem não reconhece a Palestina até hoje é o estado de Israel, então, para que possa se iniciar um processo de paz Israel precisa respeitar o direito internacional, as resoluções da ONU e acabar com o apartheid e o extermínio palestino. A questão não é religiosa. A questão é sobre direitos; sobre violações humanitárias cometidas por um Estado que sempre que minimamente atacado por quem denomina de terroristas age de uma maneira pior que os próprios terroristas.