31/07/2018
SENHORES MEMBROS DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ)
A
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURISTAS PELA DEMOCRACIA (ABJD), entidade
que congrega os mais diversos segmentos de formação jurídica no
País, vem a público e diante de vossas Excelências demonstrar sua
posição diante dos fatos ocorridos quando do julgamento proferido
durante o plantão judiciário do dia 8 de julho de 2018 do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, em sede de Habeas Corpus
impetrado em favor do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e
protagonizados por agentes do Sistema de Justiça brasileiro:
1.
Nos termos do artigo inaugural da nossa Lei Maior de 1988, a
República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o
pluralismo político entre os seus fundamentos.
2.
O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício
da liberdade como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, conforme enuncia o Preâmbulo da
chamada Constituição Cidadã. Figuram como salvaguardas desse
exercício, consagradas no rol de direitos e garantias fundamentais,
as que submetem a privação da liberdade à observância do devido
processo legal e de ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, bem como as que estabelecem presunção de
inocência até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória e concessão de habeas corpus (HC) para elidir
ameaça ou ocorrência de coação ou abuso de poder sobre a
liberdade de locomoção.
3.
Em defesa do direito à liberdade e do acesso à Justiça, a lei
confere a todo cidadão legitimidade para ingressar em juízo com
pedido de HC em nome próprio ou em favor de outro, dispensada não
só a representação, mas toda sorte de formalidade.
4.
Na vigência do Estado Democrático de Direito, cabe à autoridade
judiciária – uma vez provocada – fazer a distribuição da
justiça com imparcialidade, requisito essencial do devido processo
legal, sendo-lhe garantida independência funcional para tanto.
Ademais, no caso específico de medida urgente como o HC, deve a
autoridade decidir sobre a concessão ou não da ordem de imediato,
considerando o enfático apreço constitucional pela liberdade.
5.
No ordenamento jurídico brasileiro, a autoridade judiciária
responsável pela condução da ação penal não possui incumbência
pela execução da pena, sendo incompetente para processar e julgar
matérias a ela relacionadas.
6.
Durante o plantão judiciário, cuja razão de ser repousa na oferta
de prestação jurisdicional ininterrupta nas medidas de caráter
urgente destinadas à preservação de direitos, o plantonista –
sempre escalado de antemão – detém competência exclusiva para
decidir os casos que forem submetidos à apreciação judicial.
7.
A concessão de liminar em sede de HC por magistrado plantonista
constitui acontecimento corriqueiro na prática forense, encontra
respaldo nos regimentos internos das Cortes e implica,
invariavelmente, a soltura imediata do preso.
8.
A denegação anterior de outro HC, ainda que por Colégio de
Desembargadores, não impede a concessão monocrática de novo HC com
fundamentos diversos daqueles anteriormente apreciados, conforme
jurisprudência já pacífica.
9.
A eventual discordância da concessão de ordem de soltura só pode
ser manejada em recurso próprio, em conformidade com as normas
processuais vigentes, nos prazos e na forma definida em lei.
10.
Contudo, a concessão de HC pelo Desembargador Rogério Favreto,
plantonista do Tribunal Regional Federal da 4a Região
(TRF4), no último dia 8 de julho, provocou reação estapafúrdia,
ilegal e ousada de diversos agentes do Sistema Judiciário
brasileiro, descontentes com o teor da decisão judicial que ordenava
a libertação de um preso.
11.
O descontentamento adveio porque a decisão judicial beneficiava o
ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aparentemente eleito por
esses agentes como inimigo a ser silenciado a qualquer preço. Não
por acaso, ele foi submetido a condução coercitiva ilegal,
condenado sem provas, privado da liberdade antes do trânsito em
julgado da sentença condenatória, sujeito ao isolamento no
cumprimento da pena e, mais recentemente, também à violação de
seus direitos políticos.
12.
Na contramão dessa tendência, a atuação do Desembargador Federal
Rogério Favreto na prestação jurisdicional em comento foi exemplar
e irrepreensível. Instado a pronunciar-se sobre o pedido de HC
contra ato omissivo da juíza federal substituta Carolina Lebbos, da
12a Vara de Execução Penal de Curitiba, apresentado ao
TRF4 durante o plantão judiciário pelo qual respondia, o magistrado
prolatou decisão célere, como requer a medida de urgência
empregada, e bem fundamentada em dispositivos constitucionais e em
normativa internacional. Com competência exclusiva sobre o feito,
ele decidiu conceder a ordem de soltura imediata, por entender fortes
e procedentes os argumentos do HC, que levara a juízo a condição
de Lula como pré-candidato às eleições presidenciais e o
constrangimento decorrente da indefinição judicial quanto ao pedido
de licença para que o pré-candidato participasse de entrevistas e
atividades da pré-campanha.
13.
Agindo em cadeia e em conluio, diversos personagens do Sistema
Judicial brasileiro se articularam não só para desconstruir e
descumprir essa ordem judicial legítima, desprezando o apreço
constitucional pela liberdade e os procedimentos legais de reforma de
decisão judicial, mas também para atacar a conduta do autor da
decisão, criminalizando-a.
14.
A reação foi inaugurada pelo Presidente do TRF4, Desembargador
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, que – por telefone –
orientou o juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro, a
consultar o relator da ação penal sobre a revogação da ordem de
prisão exarada pelo Colegiado da 8a Turma daquela Corte.
15.
O juiz federal Sérgio Moro despiu-se, então, de qualquer vestígio
de imparcialidade e travestiu-se em franco perseguidor do preso. De
fato, embora estivesse de férias (portanto fora da função
judicante) e no exterior, desprovido de competência sobre a causa
(porque atinente à execução penal) e não tivesse os autos do HC
distribuídos para si (já que tramitavam em instância superior),
ele interveio no feito lançando mão de um despacho “consultivo”
(modalidade decisória sem previsão no ordenamento jurídico
pátrio), solicitando orientação e procedimento ao relator da ação
penal. Além disso, o juiz da 1a instância admoestou o
plantonista do TRF4 e incitou a autoridade policial a não cumprir a
ordem judicial deste, assim incorrendo no crime de prevaricação.
16.
Note-se que a consulta de Moro foi pronta e inteiramente acolhida
pelo Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, seu amigo de
décadas, o qual, por não estar no plantão judiciário naquele
domingo, estava então desprovido de competência para o feito. Mesmo
assim, o Desembargador Gebran Neto lançou mão de um instituto da
época da ditadura militar – a avocação de processo – para
retirar o feito das mãos do plantonista e revogar a concessão do
HC, como se fosse possível a decisão monocrática de um
desembargador cassar decisão similar de outro.
17.
Zeloso de suas competências e prerrogativas, o Desembargador Rogério
Favreto reiterou a concessão da liminar, advertiu que o
descumprimento dela implicaria em desobediência de ordem judicial,
sujeitando o autor às penalidades legais, e determinou que se
encaminhasse cópia da manifestação do juiz Sérgio Moro ao
conhecimento da Corregedoria do TRF4 e do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), a fim de apurar eventual falta funcional.
18.
O Desembargador-Presidente do TRF4 Carlos Eduardo Thompson Flores
Lenz, entretanto, não se sabe sob qual motivação, de pronto atuou
para suspender o HC concedido e manter o ex-Presidente na prisão.
Sob o pretexto de um conflito positivo de competência inexistente,
ele, que também não estava no plantão daquele domingo, acabou por
endossar a decisão monocrática do Desembargador Gebran,
determinando o retorno dos autos para que este proferisse decisão
sobre o pedido de HC.
19.
No dia 9 de julho de 2018, o Desembargador Gebran Neto reiterou o
indeferimento da medida liminar e revogou integralmente as decisões
do plantonista, suspendendo até mesmo o encaminhamento que ele
fizera de cópia da manifestação do juiz Sérgio Moro para a
apuração de falta funcional, tanto no âmbito da Corregedoria do
TRF4 quanto na esfera do CNJ.
20.
No dia 10 de julho, a Presidente do Superior Tribunal de Justiça,
Ministra Laurita Vaz, na condição de plantonista daquela Corte,
indeferiu liminarmente 143 habeas corpus impetrados em favor
do ex-Presidente Lula, apontando “manifesto abuso do direito de
petição” dos impetrantes. Na decisão, ela saudou – também sem
que seja conhecida a motivação e fundamentação – as
ilegalidades cometidas pelo juiz Sérgio Moro como “oportuna
precaução” e acusou o Desembargador Rogério Favreto de provocar
“perplexidade e intolerável insegurança jurídica” por conta de
sua decisão “inusitada e teratológica”. Com isso, pavimentou o
caminho para a invocação do “crime de hermenêutica” contra o
Desembargador Rogério Favreto.
21.
Nesse mesmo dia, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge,
ingressou no Superior Tribunal de Justiça com o absurdo pedido de
abertura de inquérito judicial contra o Desembargador Rogério
Favreto, materializando essa criminalização. Na peça, classificou
a atuação do magistrado de “episódio atípico e inesperado” –
“uma miríade de atos de desrespeito à ordem jurídica... em
prejuízo da credibilidade do Poder Judiciário” – e, apoiando-se
nas palavras da Ministra Laurita Vaz, atribuiu ao magistrado a
prática do crime de prevaricação. Ressalte-se, por oportuno, que a
criminalização da atuação funcional do magistrado e o respectivo
pedido de aplicação da penalidade de aposentadoria compulsória não
foram sequer precedidos do cuidado mínimo de levantamento de
indícios suspeitos.
22.
Apoiada e amplificada por forte pressão midiática, a reação
desses agentes à decisão de Favreto tomou assim a forma de ativismo
judicial e abraçou – sem máscaras – a teoria penal do inimigo,
acarretando grave desequilíbrio institucional e a própria ruptura
do Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição
Cidadã de 1988.
23.
Os ataques e as representações oferecidos contra o Desembargador
Rogério Favreto são destituídos de amparo legal ou jurisprudencial
e somente referendam a seletividade jurisdicional que vem marcando o
funcionamento do Judiciário brasileiro com base na atuação de
parte da magistratura federal, cujo processo de politização é hoje
indisfarçável.
24.
Apoiada e amplificada por forte pressão midiática, a reação à
decisão contramajoritária do Desembargador Rogério Favreto tomou
assim a forma de ativismo judicial e abraçou – sem máscaras – a
teoria penal do inimigo, acarretando grave desequilíbrio
institucional e ruptura do Estado Democrático de Direito instituído
pela Constituição Cidadã de 1988.
25.
Não sem motivo, a juíza substituta Carolina Lebbos – celebrizada
por vedar inicialmente até mesmo assistência religiosa e médica ao
preso em questão – decidiu denegar os diversos pedidos de
entrevista a ele formulados pela mídia no último dia 11 de julho,
alegando não ter o ex-Presidente o direito à “liberdade de
manifestação” e de estar ele inelegível, proferindo, assim,
juízo que não lhe compete. Tal postura obviamente se enquadra nos
esforços de silenciamento imposto ao líder político preso,
transformando-o em preso político. Consolida, ainda, a prática cada
vez mais comum e ousada de um juízo singular pretender pautar, senão
substituir, o entendimento de uma Corte superior. Afinal, não se
pode desconsiderar que é competência exclusiva do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) decidir sobre inelegibilidade e que mais de uma
centena de candidatos presos após decisão de 2ª instância, em
situação idêntica à de Lula, puderam concorrer às eleições e
ser diplomados nas eleições de 2016 por ordem do TSE.
26.
Significativa e reveladora, portanto, foi a “visita de cortesia”
que o Presidente do TRF4 Thompson Flores fez ao gabinete da referida
juíza substituta Carolina Lebbos no último dia 18 de julho.
Normalmente as visitas de cortesia de Presidentes de Cortes são
realizadas a uma Seção ou Subseção Judiciária, e não a um
determinado magistrado. Esse gesto de “cortesia” parece indicar a
existência de um círculo de amizade e de laços de compadrio entre
os componentes da magistratura responsáveis pelo processamento da
Operação Lava Jato já lastreados por pesquisador paranaense, os
quais lançam inafastável suspeição sobre a imparcialidade desses
agentes públicos no exercício da função judicante e sobre o seu
compromisso com o Estado Democrático de Direito.
A
ABJD entende que essas manifestações, impregnadas de paixões
políticas, a par de desinformar o grande público, pouco
familiarizado com as normas processuais penais, pretendem lançar
verdadeira cortina de fumaça por sobre a atuação anômala dos
verdadeiros transgressores das leis. São eles os que devem ser
responsabilizados pelos atos refratários ao devido processo legal,
princípio vital ao Estado Democrático de Direito e ordinariamente
desprezado nos regimes totalitários em que “os fins justificam os
meios”.
A
ABJD declara, por fim, que endossa integralmente a atuação do
Desembargador Rogério Favreto no episódio em questão e que se
manterá sempre atenta para denunciar perseguições, violações ao
devido processo legal ou a qualquer outro princípio elementar do
Estado Democrático de Direito.