É tempo de unidade para salvar a América Latina e o Caribe: crise do multilateralismo, violações ao Direito Internacional e desafios à soberania regional
*Euzamara de Carvalho e Martonio Mont'Alverne Barreto
O contexto internacional contemporâneo caracteriza-se por profunda instabilidade institucional e assimetria de poder entre Estados, fenômenos associados ao agravamento da crise estrutural do capitalismo e ao consequente aprofundamento das desigualdades globais. Nesse cenário, observa-se a emergência de novas articulações geopolíticas, como o fortalecimento dos BRICS, que se consolidam progressivamente como alternativa à hegemonia exercida pelo eixo transatlântico desde meados do século XX. Tais dinâmicas reconfiguram o equilíbrio de forças, favorecendo debates sobre multipolaridade, soberania e autodeterminação dos povos.
Paralelamente, verifica-se o esvaziamento progressivo das instituições multilaterais concebidas para a promoção da paz e da cooperação internacional — processo evidenciado pela dificuldade da Organização das Nações Unidas (ONU) em exercer plenamente seu mandato em conflitos de grande magnitude. O caso palestino-israelense, cujos desdobramentos configuram violações graves e sistemáticas de direitos humanos, representa um marco dessa crise institucional. A incapacidade de efetividade das instâncias multilaterais expõe a fragilidade do sistema jurídico internacional justamente em um momento no qual o reforço de normas, pactos e tratados seria indispensável.
Nesse ambiente, a política externa dos Estados Unidos, particularmente sob o atual governo de Donald Trump, tem adotado diretrizes que tensionam de forma direta o regime internacional de direitos humanos, o princípio da não intervenção e a autodeterminação dos povos — pilares fundamentais do Direito Internacional Público. A América Latina e o Caribe vêm sendo objeto privilegiado de estratégias geopolíticas marcadas pelo intervencionismo, pela aplicação de sanções econômicas extraterritoriais e por tentativas de reorganização forçada de governos democraticamente eleitos. Episódios recentes em países como Equador, Nicarágua, Peru, Brasil e Argentina evidenciam a relevância dessa tendência.
A utilização reiterada do discurso de combate ao narcotráfico e ao terrorismo como fundamento para intervenções diretas ou indiretas na região consolidou-se como estratégia central da política externa norte-americana. Tal expediente encontra paralelo em ataques retóricos e políticos a governos progressistas, como o caso das acusações infundadas dirigidas ao presidente colombiano Gustavo Petro, retratado como suposto líder do tráfico. Essa prática evidencia a instrumentalização de narrativas securitárias para fins de desestabilização política.
A Venezuela constitui exemplo paradigmático dessa dinâmica. As acusações contra o presidente Nicolás Maduro e a imposição de sanções unilaterais, aplicadas sem respaldo de organismos multilaterais, configuram medidas coercitivas contrárias ao Direito Internacional. Em novembro de 2024, o Conselho de Direitos Humanos da ONU reafirmou que tais sanções violam a Carta das Nações Unidas, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, o princípio da não intervenção e o direito ao desenvolvimento. O órgão instou os Estados Unidos a revogar imediatamente as restrições econômicas devido aos severos impactos sobre direitos fundamentais da população venezuelana, como saúde, alimentação e acesso a serviços essenciais. A decisão reitera a crescente centralidade da discussão sobre ilegalidade das sanções extraterritoriais e reforça a urgência de mecanismos de proteção da soberania regional.
A continuidade de práticas intervencionistas — como o bloqueio a Cuba, que experimenta grave crise humanitária — e a persistente desestabilização do Haiti reforçam a existência de um padrão histórico orientado ao controle estratégico da América Latina e do Caribe. O alinhamento de determinados governos da região às políticas norte-americanas aprofunda a vulnerabilidade regional e fragiliza a autodeterminação dos povos, contribuindo para a manutenção de estruturas neocoloniais no século XXI.
No âmbito interno brasileiro, episódios de violência estatal, como a recente chacina no Rio de Janeiro, suscitam preocupação adicional ao surgirem em momentos de intensa exposição diplomática do governo federal. Informações veiculadas sobre eventual acesso prévio do ex-presidente Donald Trump a detalhes de operações sensíveis, se confirmadas, configurariam violação direta da soberania nacional e interferência indevida em assuntos internos. A articulação entre operações policiais de alta letalidade, discursos militarizados e estratégias políticas internacionais evoca a persistência de agendas securitárias que dialogam com práticas históricas de pressão externa sobre a região.
Nesse conjunto de fatores, torna-se evidente que a defesa da soberania latino-americana depende da capacidade de articulação política entre Estados da região. A decisão do presidente da Colômbia, Gustavo Petro, e da presidenta do México, Claudia Sheinbaum, de não comparecer à 10ª Cúpula das Américas constitui gesto significativo de reafirmação da autonomia regional. Torna-se urgente fortalecer mecanismos de cooperação — diplomática, econômica e institucional — que assegurem a integridade dos sistemas democráticos e o respeito ao Direito Internacional.
A conjuntura atual demonstra que a proteção da América Latina e do Caribe requer a rejeição de práticas intervencionistas, o reforço da ordem jurídica internacional e o reconhecimento de que a unidade regional consiste em instrumento fundamental para a preservação da paz, da autonomia dos povos e da estabilidade democrática.
* Euzamara de Carvalho é Pesquisadora Doutoranda no PPGDH/UNB e Membro da Secretaria de Relações Internacionais da ABJD; Martonio Mont’ alverne Barreto é professor da UNIFOR e Membro da Secretaria de Relações Internacionai
s da ABJD.