Cicatrizes que não fecham: o golpismo na formação política brasileira. Anistiar é consentir

17/05/2025

Cicatrizes que não fecham: o golpismo na formação política brasileira. Anistiar é consentir


*Bruna Martins é advogada criminal, doutora em história, coordenadora executiva nacional da ABJD,  presidente da Comissão de História, Antropologia e Sociologia Jurídica do IAB, conselheira da SACERJ e membro da CEECL da OABRJ.


A República no Brasil nasceu através de um golpe. Em 15 de novembro de 1889, os militares, articulados com membros da elite política e econômica, depuseram o imperador  e proclamaram a República. O golpe resultou na formação de uma nova forma de governo, com Marechal Deodoro da Fonseca assumindo como o primeiro presidente do país. Desde a substituição do regime monárquico em 1889, o Brasil experimentou diferentes formas de ruptura da ordem constitucional, passando pela centralização do poder por Vargas em 1937, até a repressão brutal da ditadura militar iniciada em 1964 e a polarização política de 2016. Esses golpes têm em comum a supressão de direitos democráticos e a instalação de regimes autoritários que buscaram controlar ou eliminar opositores e centralizar o poder, mostrando a reação das elites civis e militares contra os avanços sociais.

Em 31 de março de 1964, iniciou um dos golpes mais violentos do nosso país quando as Forças Armadas, com apoio de setores da classe política e empresarial, depuseram o presidente João Goulart, instaurando uma ditadura civil-militar que duraria 21 anos. O golpe foi justificado pela necessidade de combater o comunismo e pela instabilidade política gerada com a crescente polarização ideológica no contexto da Guerra Fria. O regime militar instalou-se com o apoio dos Estados Unidos, que via com receio a ascensão do governo de Goulart e as reformas de caráter mais progressista que ele defendia. O golpe resultou na suspensão das garantias constitucionais, repressão à oposição, censura à imprensa, tortura e assassinatos políticos, configurando um dos períodos mais sombrios da História do Brasil. Em 1968 ocorreu uma radicalização ainda maior do regime com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que deu poderes quase absolutos ao presidente da República, fechando o Congresso Nacional, suspendendo as liberdades civis e permitindo a prisão de opositores políticos sem julgamento. O AI-5 foi a resposta do governo militar à crescente oposição, tanto de movimentos populares quanto de setores da esquerda armada. Esse ato aprofundou a repressão e marcou o auge da violência política durante a ditadura.

A Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como Lei da Anistia, foi promulgada sob o regime militar com o suposto intuito de promover a reconciliação nacional, ao perdoar crimes políticos cometidos tanto por opositores do regime quanto por agentes estatais. No entanto, ao equiparar os atos de resistência à ditadura às graves violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado — como tortura, execuções e desaparecimentos forçados — a norma instaurou um pacto de silêncio e impunidade. Esse arranjo jurídico consolidou a ausência de responsabilização penal pelos crimes da ditadura, frustrando o direito à memória, verdade e justiça das vítimas e seus familiares. Ao impedir a persecução judicial de torturadores e golpistas, a anistia brasileira contribuiu para a perpetuação de uma cultura de impunidade que enfraquece a democracia e normaliza a ruptura institucional como estratégia política aceitável.

Em 2016, vivenciamos um novo período de turbulência política e ruptura institucional: o impeachment de Dilma Rousseff. Não foi um golpe militar clássico, mas um golpe institucional. O processo de impeachment foi motivado por acusações de “pedaladas fiscais” e inconsistências em seu governo, mas sabemos que o processo foi politicamente motivado, com um forte componente de reação contra a presidência de uma mulher e de uma esquerda progressista. O impeachment foi conduzido de forma constitucional, mas o movimento que levou à sua aprovação no Congresso e ao afastamento de Dilma envolveu elementos de uma crise política profunda, com apoio de grandes setores do empresariado e da mídia, e foi seguido por um governo do vice-presidente Michel Temer. A partir desse evento, uma crise política duradoura foi instalada, com reflexos até hoje no cenário político brasileiro.

  A tentativa de golpe ocorrida em 8 de janeiro de 2023 é um reflexo desta crise.  Representou uma grave violação à ordem constitucional e democracia brasileira. A invasão das sedes do Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto por indivíduos inconformados com o resultado legítimo das eleições presidenciais, representou uma afronta direta ao Estado Democrático de Direito, conforme estabelecido no art. 1º, caput e inciso V, da Constituição Federal de 1988. Os atos perpetrados não se limitaram ao exercício abusivo da liberdade de manifestação, mas se enquadraram em tipos penais graves, como a abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do Código Penal), tentativa de golpe de Estado (art. 359-M), dano qualificado ao patrimônio público (art. 163, parágrafo único, inciso III), incitação ao crime (art. 286) e associação criminosa (art. 288). A depender das circunstâncias e motivações ideológicas dos atos, também é possível cogitar o enquadramento na Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo), especialmente quando os atos visavam intimidar o Estado por meio de violência ou grave ameaça.

A resposta jurídica às ações do dia 8 de janeiro foi conduzida com protagonismo pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Ministério Público Federal, em consonância com os princípios da legalidade e da responsabilização democrática. De acordo com o ministro Luiz Roberto Barroso, “a democracia não pode ser ingênua, e a defesa da Constituição exige a reação firme do Estado de Direito diante de ataques às suas instituições fundamentais”. A atuação célere do Judiciário na prisão dos envolvidos, no bloqueio de bens de financiadores e na identificação de autoridades omissas refletiu a função contramajoritária da jurisdição constitucional. Como preconiza Canotilho, a Constituição não é apenas norma jurídica suprema, mas “programa normativo de estruturação e limitação do poder político”. Assim, a responsabilização penal e cível dos envolvidos é não apenas juridicamente necessária, mas politicamente imprescindível para a preservação da soberania popular, da integridade das instituições e da memória democrática brasileira.

No entanto, apesar da necessidade que temos de tentar interromper a tradição golpista do nosso país, atualmente, tramitam no Congresso Nacional diversas propostas de anistia relacionadas aos envolvidos nos atos antidemocráticos ocorridos em 8 de janeiro de 2023. A PL 5064/2023, de autoria do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS)  propõe anistia aos acusados e condenados pelos crimes definidos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal. O projeto está em tramitação no Senado Federal, sob relatoria do senador Humberto Costa na Comissão de Defesa da Democracia. A PL 2858/2022 apresentada pelo ex-deputado Major Vitor Hugo (PL-GO) pretende conceder anistia ampla aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro. O projeto enfrenta resistência e sua tramitação tem sido lenta na Câmara dos Deputados. E, temos também, a PL 1815/2025, proposta pelo deputado Fausto Pinato (PP-SP) que busca uma abordagem diferenciada, excluindo os organizadores e financiadores dos atos da anistia, e estabelecendo uma gradação de penas com base na conduta individual de cada envolvido.

Consideramos que conceder anistia aos réus e condenados pelos atos de 8 de janeiro seria um retrocesso democrático, incentivando a impunidade e enfraquecendo o Estado de Direito. Os atos foram uma tentativa de golpe contra as instituições democráticas e, portanto, não devem ser anistiados.  A proposta levanta uma série de questões jurídicas, políticas e sociais e, se qualquer uma delas for aprovada, pode causar sérios danos à estabilidade e ao funcionamento do Estado democrático de direito no Brasil.

A anistia aos envolvidos em crimes de golpe e atentados contra o Estado implica em um enfraquecimento da autoridade do Judiciário, além de fragilizar a própria Constituição. O Judiciário, em um Estado democrático, deve ser um guardião da legalidade e da Constituição. Ao conceder anistia, o Congresso estaria deslegitimando as decisões judiciais que buscam responsabilizar os envolvidos, em especial aqueles que foram indiciados ou que já respondem a processos. A imposição da impunidade enfraquece a moralidade pública e o Estado, que deve garantir a punição de crimes graves.

Uma das consequências diretas da concessão de anistia seria o envio de uma mensagem clara à sociedade e aos grupos políticos: a de que ações violentas contra a democracia podem ser cometidas sem risco de punição. A impunidade enfraquece o mecanismo de dissuasão que a justiça penal deve ter, ao punir crimes com a devida rigidez. Isso, por sua vez, encorajaria novos atos de violência e agressões às instituições democráticas, mantendo um ciclo perigoso de recorrência a esse tipo de conduta. Ao anistiar os envolvidos em atos golpistas, o Congresso estaria, em essência, legitimando a possibilidade de novos ataques às instituições democráticas, sem que seus autores temessem as consequências de suas ações.

A proposta criaria um precedente perigoso, em que ações contra a ordem constitucional não são tratadas com o devido rigor. Em um Estado democrático, a preservação das instituições deve ser prioritária, e ações como as de 8 de janeiro devem ser vistas como crimes graves, puníveis com a máxima severidade, em defesa da estabilidade e do funcionamento das instituições. A estabilidade política do país estaria seriamente comprometida, e a população perderia confiança nas instituições públicas, na Justiça e no sistema político como um todo.

A aprovação de uma anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro também agravaria a polarização social e política no Brasil. A medida poderia provocar reações de setores da sociedade civil, de partidos políticos e de movimentos democráticos que defendem a responsabilização dos envolvidos. A concessão de anistia para ações de tal gravidade poderia resultar em protestos, divisões internas e um clima de radicalização política que dificultaria o diálogo e a construção de consenso. A medida poderia alimentar a narrativa de que o sistema político brasileiro favorece determinados grupos e permite a impunidade para aqueles que cometem crimes contra a democracia. Isso não só prejudicaria o ambiente político, como também afetaria a coesão social e o apoio popular às instituições.

A aprovação de uma anistia representaria um retrocesso significativo no fortalecimento da democracia no Brasil. Promoveria a impunidade e enfraqueceria o Estado de direito, deslegitimaria o sistema judicial e agravaria a polarização política no país. Nesse sentido, a proposta é incompatível com os princípios de justiça, democracia e respeito aos direitos humanos, pilares fundamentais do Brasil como uma nação democrática e soberana. A responsabilização dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro é crucial para assegurar a integridade do sistema político e evitar que esse tipo de violência contra a democracia se repita no futuro. 

O Brasil, em seu caminho para a consolidação democrática, carrega as cicatrizes de cada um dos momentos de ruptura. Cada golpe não apenas abalou a ordem política, mas também deixou marcas profundas na sociedade brasileira, que até hoje busca reconstruir a confiança nas instituições e na democracia. Precisamos romper o ciclo da tradição golpista em nosso país, a punição exemplar dos envolvidos no 8 de janeiro pode representar um grande passo neste sentido. Por isso, em nome da Democracia, cabe a sociedade civil se mobilizar e responder em uníssono: Anistia não!

Cicatrizes que não fecham: o golpismo na formação política brasileira. Anistiar é consentir

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