*Artigo publicado originalmente no Brasil de Fato e escrito por Tânia Maria de Oliveira é da Coordenação Executiva Nacional da ABJD.
A disputa na Câmara dos Deputados envolvendo o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do deputado e ex-diretor da Abin no governo Bolsonaro, Alexandre Ramagem, ocorre com ares de interpretação jurídica, com o intuito de dissimular artifícios para alcançar resultados políticos completamente fora dos parâmetros de constitucionalidade e legalidade.
Em retrospectiva, junto a outros sete réus, incluindo Jair Bolsonaro, o deputado Ramagem responde à Ação Penal nº 2668 pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, com considerável prejuízo para a vítima, e deterioração de patrimônio tombado.
Por recurso apresentado pelo Partido Liberal, ao qual pertence o parlamentar, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprecia, com previsão de votar na próxima semana, um pedido de suspensão da Ação Penal em relação a ele, já com voto favorável do relator, deputado Alfredo Gaspar (União/AL).
A possibilidade de suspensão de ação penal contra parlamentares no exercício de seu mandato tem previsão no art. 53, § 3º, da Constituição Federal:
“Recebida a denúncia contra o senador ou deputado, por crime cometido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.”
A denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, recebida integralmente pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento realizado no dia 26 de março de 2025, afirma que Ramagem integrou, de maneira livre, consciente e voluntária, uma organização criminosa constituída desde pelo menos o dia 29 de junho de 2021 e operando até o dia 8 de janeiro de 2023, com o emprego de armas (art. 2º da Lei n. 12.850/2013). Essa organização utilizou violência e grave ameaça com o objetivo de impedir o regular funcionamento dos Poderes da República (art. 359-L do Código Penal) e depor um governo legitimamente eleito (art. 359-M do Código Penal).
De acordo com a peça, como diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Ramagem teria prestado suporte técnico, elaborando documentos para subsidiar ações de desinformação, especialmente em relação à segurança do sistema de votação eletrônico e à legitimidade das instituições responsáveis pelo processo eleitoral de 2022.
A PGR aponta arquivos digitais e materiais com argumentos contrários às urnas, e um documento criado no dia 2 de agosto de 2021, cuja alteração final se deu no mesmo dia dentro das dependências da Agência.
Isso faria parte de um plano que culminou com os atos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023: a invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes. E é precisamente aqui que se coloca o ponto do tempo do limite do julgamento da Câmara dos Deputados.
Pelo texto expresso e inequívoco da Constituição Federal, a Casa Legislativa só pode suspender ação penal contra parlamentar por crimes cometidos após sua diplomação, que, no caso de Ramagem, aconteceu no dia 16 de dezembro de 2022.
Isso significa que a suspensão da Ação Penal em relação a ele, uma vez decidida pela Câmara dos Deputados, restringe-se à sua atuação nos ataques golpistas de 8 de janeiro, nos crimes de: dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, com considerável prejuízo para a vítima, e deterioração de patrimônio tombado. Mas ela segue válida em relação aos crimes que lhe são atribuídos em virtude dos atos praticados quando diretor da Abin, em todo o período anterior à data de sua diplomação: golpe de Estado, organização criminosa armada e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.
Esse foi o teor do ofício que o presidente da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cristiano Zanin, enviou ao presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, no dia 24 de abril último, após a republicação da ata do colegiado que tornou réus os acusados do núcleo 1 do processo sobre a tentativa de golpe.
Por outro lado, o texto apresentado pelo relator na CCJ conclui, curiosamente, por sustar “o andamento da ação penal contida na Petição 12.100, em curso no Supremo Tribunal Federal, em relação a todos os crimes imputados”, sem citar o nome do deputado Ramagem na parte dispositiva.
Evidentemente, o Congresso Nacional não possui competência para sequer apreciar ação penal sobre quem não seja detentor de mandato parlamentar. O deputado Ramagem é o único parlamentar da referida Ação Penal. Logo, o poder decisório da Câmara dos Deputados, qualquer que seja a interpretação de extensão de efeitos, restringe-se a ele.
O poder do Parlamento para o processo penal é exceção à regra de competência constitucional do Poder Judiciário. O disposto no § 3º do art. 53 da CF/88 decorre da garantia da imunidade parlamentar posta no caput do mesmo artigo, e não permite interpretação extensiva. A delimitação é evidente: o sujeito da norma é o parlamentar.
Mas o texto apresentado pelo relator da CCJ, aparentemente de forma proposital, insufla o debate público sobre seu alcance, acirra os ânimos na sociedade e aguça a disputa de competência entre poderes, ainda que sem qualquer fundamento jurídico-legal.
Não por acaso, imediatamente após a apresentação do relatório, parlamentares e aliados do ex-presidente Bolsonaro começaram a discursar sobre a amplitude da decisão da Câmara. O líder do PL, deputado Sóstenes Cavalcante, fez uma fala pública de comemoração, e vários portais de mídia começaram a tratar da hipótese e a trazer conjecturas, no mais banal modelo de fake news sobre a possibilidade de o julgamento beneficiar Jair Bolsonaro e demais réus.
Na prática, para sustar a Ação Penal 2668 em relação ao deputado Ramagem, a Câmara precisa aprovar o relatório no plenário da Casa por sua maioria absoluta de 257 votos favoráveis. Aberração será se o órgão admitir a aprovação de um relatório que, por opção de redação, induza a uma interpretação utilitarista, completamente abusiva de um poder que não se sustenta nem mesmo na leitura mais superficial do texto constitucional.
Aduzir, sequer por hipótese, que a Câmara dos Deputados possa suspender ação penal contra quem não é deputado implica desvirtuar completamente o princípio constitucional da independência e equilíbrio entre os poderes, transformar a disputa política na desestruturação da própria sistemática jurídica de organização do Estado, podendo produzir não apenas insegurança jurídica, mas instabilidade estrutural.
Editado por: Nathallia Fonseca
Foto: Pablo Porciuncula/AFP