O Sistema de Justiça ocupa uma posição central em qualquer sociedade democrática, sendo responsável por garantir a aplicação das leis, proteger os direitos fundamentais e mediar conflitos entre o Estado e seus cidadãos. Ele é a espinha dorsal da justiça, assegurando que os princípios democráticos sejam respeitados e promovidos.
Em julho de 2022, a ABJD realizou uma Assembleia nos dias 28 e 29, onde foi debatido o Sistema de Justiça desejado pela entidade. Dessa discussão surgiu um documento com propostas para a estruturação de um sistema mais democrático e inclusivo. Nesse documento[1], o conceito de sistema foi definido da seguinte forma: "Um sistema pressupõe um conjunto de elementos que operam, segundo princípios, para alcançarem uma finalidade comum. As partes que o integram precisam estar ordenadas por elementos intrínsecos que as conectem e unidas por princípios fundamentais, não podendo se reduzir a um amontoado de ‘singularidades desconexas’”. O texto, então, detalha os órgãos e instituições que compõem o Sistema de Justiça no Brasil.
Assim, a ABJD compreende que o Sistema de Justiça brasileiro é formado pelos órgãos do Poder Judiciário, conforme o artigo 92 da Constituição Federal, além de instituições como o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e a Advocacia Privada, previstos nos artigos 128, 130-A, 131, 133 e 134 da CF. Também integram o sistema os órgãos da Polícia Judiciária, que, ao exercer a função de investigação criminal, complementam o conjunto.
Esses componentes são organizados por relações funcionais, conforme as competências estabelecidas na Constituição, e unidos pela missão comum de garantir e promover a função judicial do Estado. Como as demais funções estatais, a judicial se baseia na cidadania e na dignidade humana, e tem como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme estabelecido no artigo 3º da CF. Assim, o Sistema de Justiça vai além de uma mera estrutura técnica; ele é um conjunto integrado de instituições e ações voltadas para garantir direitos fundamentais e promover o bem-estar de todos, sem qualquer forma de discriminação.
É dentro dessa concepção que se torna urgente a realização de uma Conferência Nacional do Sistema de Justiça. O objetivo central dessa conferência é repensar e fortalecer as estruturas do Sistema de Justiça no Brasil, abordando questões como democratização, participação popular, controle social e transparência nas instituições, bem como debater as formas de ingresso nas carreiras jurídicas, garantindo maior representatividade das minorias.
Por que uma Conferência Nacional do Sistema de Justiça é necessária?
O atual modelo de justiça brasileiro enfrenta desafios sistêmicos que comprometem a realização plena de uma justiça equitativa e acessível. Entre os principais problemas está a falta de democratização do Sistema de Justiça, que ainda não reflete a diversidade da sociedade brasileira. A estrutura elitista, especialmente nas carreiras jurídicas, impede a inclusão de grupos marginalizados, como negros, mulheres, indígenas e a população LGBTQIA+, que são sub-representados tanto no Judiciário quanto no Ministério Público e nas demais instituições.
Além disso, a ausência de mecanismos efetivos de participação popular e controle social nas ações do Sistema de Justiça cria uma desconexão entre essas instituições e as demandas da sociedade civil. Isso perpetua a opacidade e a desconfiança de parte da sociedade em relação ao Poder Judiciário A conferência é, portanto, um espaço fundamental para discutir como garantir que o sistema atue com mais transparência, seja fiscalizado de maneira eficaz e atenda à realidade plural da população brasileira.
Democratização e Diversidade: Desafios Urgentes
A falta de representatividade dentro das carreiras jurídicas é um dos pontos centrais a ser debatido. É necessário discutir formas de ingresso que reflitam a pluralidade da sociedade, garantindo que mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ e outros grupos marginalizados possam ocupar posições dentro do sistema de justiça. Essa pluralidade é essencial para que decisões e políticas sejam mais justas, compreensivas e inclusivas.
O Brasil tem assistido a um aumento no uso político do Sistema de Justiça, conhecido como lawfare, que tem servido como ferramenta de perseguição a ativistas, opositores políticos e defensores de direitos humanos. Esse fenômeno agrava o desequilíbrio de poder, transformando a Justiça em uma arma contra aqueles que lutam por mudanças estruturais. Uma Conferência Nacional pode ser um marco na discussão de garantias processuais que impeçam o uso do Judiciário para finalidades que subvertam a democracia e os direitos fundamentais.
Acesso à Justiça e Encarceramento em Massa
O acesso à Justiça é um dos pilares fundamentais para uma sociedade verdadeiramente democrática, mas permanece um desafio para milhões de brasileiros, especialmente os mais vulneráveis. É necessário colocar em pauta a urgência de eliminar as barreiras que tornam o acesso ao Judiciário uma realidade distante para grande parte da população. Entre essas barreiras, destacam-se as de ordem econômica, geográfica e cultural. Para muitos cidadãos, a falta de recursos financeiros impede a contratação de advogados ou o custeio de processos judiciais; além disso, em regiões mais isoladas, o simples deslocamento até uma unidade do Judiciário pode ser inviável. As barreiras culturais e educacionais também desempenham um papel significativo, uma vez que o desconhecimento dos próprios direitos e dos mecanismos disponíveis para garanti-los perpetua o ciclo de exclusão.
Essas dificuldades são ainda mais graves para grupos historicamente marginalizados, como a população negra e pobre, que enfrenta as consequências de um Sistema de Justiça seletivo e punitivo. O encarceramento em massa, que afeta desproporcionalmente essas parcelas da população, é um reflexo direto da desigualdade estrutural no país. A combinação de uma política de segurança pública baseada na repressão e uma legislação de drogas punitiva alimenta um ciclo de violência e exclusão. A falta de acesso a uma defesa adequada e as prisões preventivas prolongadas acabam transformando a prisão em uma sentença antecipada, violando princípios fundamentais de justiça e dignidade.
Portanto, é fundamental que a Conferência do Sistema de Justiça discuta não apenas a ampliação do acesso à Justiça, mas também a urgente necessidade de reformar o modelo punitivo atual. É crucial buscar alternativas ao encarceramento, promovendo políticas que priorizem medidas preventivas. Essas abordagens são essenciais para romper o ciclo de criminalização da pobreza, ao mesmo tempo em que promovem uma justiça mais humanizada, inclusiva e menos excludente, capaz de garantir os direitos de todos os cidadãos.
O debate sobre o encarceramento em massa precisa, portanto, ser um ponto central dessa conferência, com um olhar crítico sobre como o Sistema de Justiça tem contribuído para perpetuar as desigualdades e como pode ser reformado para cumprir sua verdadeira missão: garantir justiça, equidade e dignidade para todos.
O Papel da Justiça de Transição e das Violações Internas no Sistema
A Justiça de Transição é um tema essencial para o Brasil, pois o país ainda não enfrentou de maneira plena e eficaz os crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985). Embora alguns avanços tenham sido feitos, como a criação da Comissão Nacional da Verdade, a responsabilização dos agentes envolvidos em graves violações de direitos humanos permanece insuficiente. A Conferência do Sistema de Justiça deve reforçar a importância de políticas que garantam a memória, a verdade e a justiça, reconhecendo o passado de repressão, violência e autoritarismo. Sem esse enfrentamento, a sociedade brasileira continuará a conviver com a impunidade e a falta de reparação adequada para as vítimas e suas famílias.
Criar mecanismos que assegurem a memória, a verdade e a justiça é uma necessidade que transcende os crimes da ditadura militar. O Brasil viveu, mais recentemente, outro período de graves retrocessos institucionais e democráticos, iniciado com o golpe de 2016. A destituição da presidenta Dilma Rousseff, com base em um processo de impeachment questionável, marcou um ponto de inflexão na história política do país. A partir desse momento, diversas violações de direitos humanos, ataques à soberania nacional e à proteção do meio ambiente se intensificaram. Essas violações continuaram e foram agravadas durante a gestão do governo que assumiu após o golpe, incluindo crimes cometidos contra o sistema eleitoral e os direitos humanos, especialmente durante a pandemia de COVID-19, que expôs negligência e descaso com a vida da população.
Além de responsabilizar os agentes públicos e privados envolvidos nesses crimes, é imprescindível que a Conferência também aborde as violações internas ao próprio Sistema de Justiça. Essas violações manifestam-se de diversas formas, como torturas praticadas nas fases de investigação e detenção, sentenças discriminatórias baseadas em preconceito de raça, classe ou gênero, e prisões arbitrárias que ferem diretamente os princípios do devido processo legal. Essas práticas corroem a confiança da população nas instituições de justiça e perpetuam ciclos de opressão e desigualdade.
A criação de mecanismos efetivos de controle e responsabilização dentro do Sistema de Justiça é igualmente importante. Isso inclui fortalecer a independência e a transparência das corregedorias, aprimorar o controle social sobre as decisões judiciais e ampliar o espaço para a participação popular na avaliação das práticas institucionais. A justiça de transição, nesse contexto, não deve se limitar ao passado, mas deve se expandir para garantir a responsabilização por crimes cometidos após o golpe de 2016 e as violações que ocorreram durante a pandemia.
Ao discutir a Justiça de Transição, a Conferência precisa, portanto, reafirmar o compromisso do Sistema de Justiça com a reparação histórica, a promoção da verdade e a responsabilização dos crimes passados e presentes. Isso é crucial para construir um futuro em que as violações de direitos humanos não sejam toleradas e onde a justiça seja um verdadeiro instrumento de proteção dos direitos fundamentais e da dignidade humana.
O Papel do Observatório Justiça e Democracia (OJD) nesse Processo
O Observatório Justiça e Democracia (OJD), da ABJD, tem se consolidado como uma ferramenta essencial de monitoramento crítico das práticas e decisões dos agentes do Sistema de Justiça. A conferência será uma oportunidade valiosa para apresentar os dados e relatórios produzidos pelo OJD, que expõem como o sistema tem sido utilizado para perpetuar desigualdades e violações de direitos.
Além disso, a Conferência será um espaço de incidência política fundamental para a reforma do Sistema de Justiça a partir de uma perspectiva verdadeiramente democrática e inclusiva. A partir dos dados e análises fornecidos pelo OJD, será possível evidenciar a recorrência de práticas como sentenças injustas e prisões arbitrárias, fortalecendo o debate por mudanças estruturais. Dessa forma, o evento poderá contribuir diretamente para a formulação de políticas públicas voltadas à democratização do Sistema de Justiça.
Conclusão
A realização da Conferência Nacional do Sistema de Justiça é uma iniciativa imprescindível para que o Brasil possa avançar em direção a um sistema que efetivamente promova a justiça social. O evento será uma oportunidade para repensar as bases desse sistema, ouvir as demandas da sociedade e propor reformas que garantam transparência, inclusão e equidade. O papel da ABJD nesse processo será fundamental, oferecendo análises críticas e dados que servirão de subsídio para as discussões e propostas de transformação.
Por meio da conferência, será possível não apenas identificar os problemas, mas construir soluções concretas para democratizar e humanizar o Sistema de Justiça brasileiro.
[1] Cartilha O Sistema de Justiça que queremos da ABJD.
*Por Tereza Mansi – membra da Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)