Por que defender a Venezuela?

18/09/2024

Por que defender a Venezuela?


Por Euzamara Carvalho e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima*

Teorias da história e da política são as mais valiosas ferramentas de que dispomos para nossas análises. É a história que torna possível que tomemos posição diante dos acontecimentos do presente que exigem de nós a respectiva compreensão. Walter Benjamin adverte que “articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo como ele realmente foi. Significa apoderar-se de uma memória na medida em que ela pisca no momento de um perigo”, que pode ser no presente.

Antes de Benjamin, foi Karl Marx quem chamou a atenção sobre a necessidade de dissipar a névoa diante dos olhos para que enxerguemos a monstruosidade, ao contrário do mito de Perseu, que precisou da proteção da névoa para lidar com a monstruosidade.

Assim, ao abordamos qualquer assunto, não temos como escapar do acúmulo que a história mostra. Igualmente, somente a visão da totalidade permite a compreensão adequada dos fenômenos que nos cercam. O olhar a partir da totalidade é que pode denunciar, ou não, a piscadela no momento do perigo.

Um dos primeiros elementos objetivos a tornar possível uma análise sobre as eleições da Venezuela de julho de 2024 é a absoluta incompatibilidade entre democracia e imperialismo. Desprezar esta incompatibilidade terá o efeito de trazer à discussão um olhar defeituoso sobre o que ocorre na Venezuela e na América do Sul. 

A Venezuela tem trilhado um caminho árduo no enfrentamento ao avanço do neoliberalismo e das forças de extrema direita alinhadas às práticas fascistas. Na contramão de países neodesenvolvimentistas, tem buscado a República Bolivariana da Venezuela um desenvolvimento nacional autônomo, com controle social da produção dos bens necessários para o seu povo, e potencializado a consolidação de um projeto de organização política que integra os grupos de base na tomada de decisão sobre os rumos do país. Desse modo, resiste à subordinação e à dependência dos países centrais.

As ramificações do fascismo reverberadas na capacidade da extrema direita de usar os meios de comunicação para espalhar falsas verdades e criar mecanismos de desinformação na mídia hegemônica, em vários países do mundo, têm contribuído para permanentes manifestações equivocadas de diversos setores da sociedade sobre as eleições e a atuação do governo eleito pela vontade popular. 

Posicionamentos como o pedido de realização de novas eleições ou o não reconhecimento da reeleição de Nicolás Maduro se traduzem em franca intervenção na soberania de um País, que possui autoridades e órgãos de Poder do Estado, constitucional e legalmente investidos das funções de organizar eleições e declarar resultados. Consequentes tentativas de ingerência de Chefes de Estados, inclusive de setores que se reivindicam progressistas, se configuram como atitudes violadoras das leis e pactos internacionais, de respeito à autonomia e soberania dos povos, principalmente na região da América Latina e do Caribe.

Causa perplexidade o silenciamento dos Chefes de Estados e de Governos e de organismos internacionais sobre o descomprometimento da oposição com as instituições e leis da Constituição da Venezuela. A atual oposição do governo de Nicolás Maduro exibe robusto histórico de desrespeito a pactos democráticos, conforme a Constituição e as leis que regem a Venezuela e seu sistema judiciário. Foi esta oposição a responsável pelo golpe de 2002, que destituiu um Presidente da República eleito de seu posto, por 48 horas; que atentou contra a democracia no país e contra a vida de autoridades, com a participação de militantes mercenários; e que clamou por invasão de forças militares estrangeiras contra a Venezuela. 

Não há contradição entre defender processos democráticos e, ao mesmo tempo, projetos políticos de opositores que violam as leis e as instituições: o que se tem, nesta verdade, é a transformação da democracia em não democracia; da soberania em não soberania, numa esperta operação de retórica, com o objetivo de minar os esforços de um povo, que insiste em forjar outro projeto democrático com conteúdo distinto daquele das formas do modelo liberal.

Qual o elemento objetivo que possui a oposição venezuelana para descréditos das eleições, a não ser sua retórica de fraude eleitoral? Nenhum. O processo de votação transcorreu em absoluta normalidade a 28 de junho de 2024; o Conselho Nacional Eleitoral exibe toda e qualquer documentação sobre as eleições; a última instância do Poder Judiciário julga recurso, conforme a Constituição e o devido processo legal. O que mais falta? 

Se as aparências bastassem, não seriam necessárias nem ciência, nem filosofia para dissipar a névoa que persegue a nós todos. O discurso da oposição na Venezuela é o mesmo de Jair Bolsonaro, que repete ter vencido as eleições de 2018 ainda no primeiro turno, assim como teria vencido em 2022. Bolsonaro planejava perturbar as eleições de 2022, e não hesitou em desonrar a Justiça Eleitoral brasileira.  Donald Trump não se cansa de dizer que venceu as eleições em 2020 em pleno debate no ano eleitoral de 2024. Como Bolsonaro, Trump é direto e diz que foi roubado pelas autoridades eleitorais dos Estados Unidos da América. Nos três casos – Brasil, Estados Unidos e Venezuela – o discurso de descrédito das instituições eleitorais e da democracia é o mesmo e se configura perigoso.

O que se deve enxergar, para além da objetividade destas aparências dos acontecimentos? Muito! Deve-se abrir os olhos e ver que há um posicionamento da mídia mainstream ocidental que deslegitima tudo que não lhe seja submisso; deve-se compreender que outras formas de democracia são possíveis e que povos podem se organizar como quiserem para seu bem-estar e defesa de suas riquezas nacionais. Sobretudo, deve-se tem em mente que, na periferia do capitalismo ocidental, lutas como a do povo venezuelano por sua autodeterminação não será um passeio. 

Portanto, nossa posição enquanto juristas em defesa da democracia nos remete ao compromisso com a soberania dos povos e com os processos democráticos resultantes de lutas constitutivas de direitos que, confrontam inclusive as exclusões estruturais impostas pelo modelo da democracia liberal.   

* Euzamara de Carvalho é Pesquisadora Doutoranda no PPGDH/UNB e Membro da Executiva Nacional da ABJD; Martonio Mont’ alverne Barreto é professor da UNIFOR e Membro da Secretaria de Relações Internacionais da ABJD. Este artigo foi publicado originalmente no Brasil de Fato.

Escolha a ABJD mais próxima de você

TO BA SE PE AL RN CE PI MA AP PA RR AM AC RO MT MS GO PR SC RS SP MG RJ ES DF PB