Por Euzamara Carvalho e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima*
Teorias da história e da política são as mais valiosas ferramentas de que dispomos para nossas análises. É a história que torna possível que tomemos posição diante dos acontecimentos do presente que exigem de nós a respectiva compreensão. Walter Benjamin adverte que “articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo como ele realmente foi. Significa apoderar-se de uma memória na medida em que ela pisca no momento de um perigo”, que pode ser no presente.
Antes de Benjamin, foi Karl Marx quem chamou a atenção sobre a necessidade de dissipar a névoa diante dos olhos para que enxerguemos a monstruosidade, ao contrário do mito de Perseu, que precisou da proteção da névoa para lidar com a monstruosidade.
Assim, ao abordamos qualquer assunto, não temos como escapar do acúmulo que a história mostra. Igualmente, somente a visão da totalidade permite a compreensão adequada dos fenômenos que nos cercam. O olhar a partir da totalidade é que pode denunciar, ou não, a piscadela no momento do perigo.
Um dos primeiros elementos objetivos a tornar possível uma análise sobre as eleições da Venezuela de julho de 2024 é a absoluta incompatibilidade entre democracia e imperialismo. Desprezar esta incompatibilidade terá o efeito de trazer à discussão um olhar defeituoso sobre o que ocorre na Venezuela e na América do Sul.
A Venezuela tem trilhado um caminho árduo no enfrentamento ao avanço do neoliberalismo e das forças de extrema direita alinhadas às práticas fascistas. Na contramão de países neodesenvolvimentistas, tem buscado a República Bolivariana da Venezuela um desenvolvimento nacional autônomo, com controle social da produção dos bens necessários para o seu povo, e potencializado a consolidação de um projeto de organização política que integra os grupos de base na tomada de decisão sobre os rumos do país. Desse modo, resiste à subordinação e à dependência dos países centrais.
As ramificações do fascismo reverberadas na capacidade da extrema direita de usar os meios de comunicação para espalhar falsas verdades e criar mecanismos de desinformação na mídia hegemônica, em vários países do mundo, têm contribuído para permanentes manifestações equivocadas de diversos setores da sociedade sobre as eleições e a atuação do governo eleito pela vontade popular.
Posicionamentos como o pedido de realização de novas eleições ou o não reconhecimento da reeleição de Nicolás Maduro se traduzem em franca intervenção na soberania de um País, que possui autoridades e órgãos de Poder do Estado, constitucional e legalmente investidos das funções de organizar eleições e declarar resultados. Consequentes tentativas de ingerência de Chefes de Estados, inclusive de setores que se reivindicam progressistas, se configuram como atitudes violadoras das leis e pactos internacionais, de respeito à autonomia e soberania dos povos, principalmente na região da América Latina e do Caribe.
Causa perplexidade o silenciamento dos Chefes de Estados e de Governos e de organismos internacionais sobre o descomprometimento da oposição com as instituições e leis da Constituição da Venezuela. A atual oposição do governo de Nicolás Maduro exibe robusto histórico de desrespeito a pactos democráticos, conforme a Constituição e as leis que regem a Venezuela e seu sistema judiciário. Foi esta oposição a responsável pelo golpe de 2002, que destituiu um Presidente da República eleito de seu posto, por 48 horas; que atentou contra a democracia no país e contra a vida de autoridades, com a participação de militantes mercenários; e que clamou por invasão de forças militares estrangeiras contra a Venezuela.
Não há contradição entre defender processos democráticos e, ao mesmo tempo, projetos políticos de opositores que violam as leis e as instituições: o que se tem, nesta verdade, é a transformação da democracia em não democracia; da soberania em não soberania, numa esperta operação de retórica, com o objetivo de minar os esforços de um povo, que insiste em forjar outro projeto democrático com conteúdo distinto daquele das formas do modelo liberal.
Qual o elemento objetivo que possui a oposição venezuelana para descréditos das eleições, a não ser sua retórica de fraude eleitoral? Nenhum. O processo de votação transcorreu em absoluta normalidade a 28 de junho de 2024; o Conselho Nacional Eleitoral exibe toda e qualquer documentação sobre as eleições; a última instância do Poder Judiciário julga recurso, conforme a Constituição e o devido processo legal. O que mais falta?
Se as aparências bastassem, não seriam necessárias nem ciência, nem filosofia para dissipar a névoa que persegue a nós todos. O discurso da oposição na Venezuela é o mesmo de Jair Bolsonaro, que repete ter vencido as eleições de 2018 ainda no primeiro turno, assim como teria vencido em 2022. Bolsonaro planejava perturbar as eleições de 2022, e não hesitou em desonrar a Justiça Eleitoral brasileira. Donald Trump não se cansa de dizer que venceu as eleições em 2020 em pleno debate no ano eleitoral de 2024. Como Bolsonaro, Trump é direto e diz que foi roubado pelas autoridades eleitorais dos Estados Unidos da América. Nos três casos – Brasil, Estados Unidos e Venezuela – o discurso de descrédito das instituições eleitorais e da democracia é o mesmo e se configura perigoso.
O que se deve enxergar, para além da objetividade destas aparências dos acontecimentos? Muito! Deve-se abrir os olhos e ver que há um posicionamento da mídia mainstream ocidental que deslegitima tudo que não lhe seja submisso; deve-se compreender que outras formas de democracia são possíveis e que povos podem se organizar como quiserem para seu bem-estar e defesa de suas riquezas nacionais. Sobretudo, deve-se tem em mente que, na periferia do capitalismo ocidental, lutas como a do povo venezuelano por sua autodeterminação não será um passeio.
Portanto, nossa posição enquanto juristas em defesa da democracia nos remete ao compromisso com a soberania dos povos e com os processos democráticos resultantes de lutas constitutivas de direitos que, confrontam inclusive as exclusões estruturais impostas pelo modelo da democracia liberal.
* Euzamara de Carvalho é Pesquisadora Doutoranda no PPGDH/UNB e Membro da Executiva Nacional da ABJD; Martonio Mont’ alverne Barreto é professor da UNIFOR e Membro da Secretaria de Relações Internacionais da ABJD. Este artigo foi publicado originalmente no Brasil de Fato.