Grégori Lucas Dias da Silva
Graduando em Direito na Escola de Direito do IDP. Foi integrante da Clínica de Direitos Humanos do IDP com foco na comunidade LGBTQIAPN+. Membro da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia - Núcleo Distrito Federal. Membro da Liga LGBT do IDP. Integrante do Grupo de Pesquisa sobre Direito do Trabalho e Processual do Trabalho do IDP e do (R)existir - Núcleo LGBT da Universidade de Brasília (UnB). Estagiário no escritório Cezar Britto & Advogados Associados.
Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e o Mandado de Injunção nº 4733, o Supremo Tribunal Federal firmou um passo na fruição dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+.
Estes dois precedentes são paradigmáticos ao vincular ao Estado o poder-dever de coibir atos atentatórios contra a população LGBTQIAPN+ por meio do Direito Penal.
O Superior Tribunal de Justiça, em consonância a essa jurisprudência, logrou no ordenamento jurídico um bloco de legalidade que prevalece o respeito à dignidade humana de cidadãos LGBTQIAPN+.
Nesse sentido, confira-se: STJ - HC: 861817 SC 2023/0375894-7, Relator: Ministro JESUÍNO RISSATO DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT, Data de Julgamento: 06/02/2024, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/02/2024; STJ - AREsp: 1552655 DF 2019/0220529-0, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Publicação: DJ 26/05/2020; STJ - REsp: 1008398 SP 2007/0273360-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 15/10/2009, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/11/2009; STJ - REsp: 1977124 SP 2021/0391811-0, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 05/04/2022, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/04/2022.
Recentemente, o Tribunal da Cidadania decidiu que para aferição de tipicidade da injúria racial homotransfóbica não precisaria a vítima das ofensas ser parte da comunidade LGBTQIAPN+. Ementou-se o julgado em voga assim:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. INJÚRIA RACIAL. HOMOFOBIA. REFERÊNCIA À ORIENTAÇÃO SEXUAL DA VÍTIMA. EQUIPARAÇÃO EFETIVADA PELO STF. GRAVAÇÃO AMBIENTAL REALIZADA PELA VÍTIMA EM SUA PRÓPRIA CASA. AUSÊNCIA DE ILICITUDE. DESNECESSIDADE DE PERÍCIA ATESTADA PELO JUÍZO PROCESSANTE. ATIPICIDADE NÃO CONFIGURADA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. A gravação realizada pela vítima sem o conhecimento do autor do delito não se equipara à interceptação telefônica, sendo prova válida. Caso em que a vítima, dentro de sua própria residência, gravou as ofensas homofóbicas proferidas pelo vizinho a ela direcionadas.
2. Cabe ao Juiz processante indeferir as diligências consideradas irrelevantes, impertinentes e protelatórias requeridas pelas partes.Se o magistrado pontuou que a defesa não apontou indícios de imprestabilidade do vídeo gravado pela vítima e não apresentou justificativa plausível para a realização de perícia no celular do ofendido, não cabe a esta Corte Superior rever a referida decisão.
3. Independentemente da real orientação sexual da vítima, o delito de injúria restou caracterizado quando o acusado, valendo-se de insultos indiscutivelmente preconceituosos e homofóbicos, ofendeu a honra subjetiva do ofendido, seu vizinho. Isto é, não é porque a vítima é heterossexual que não pode sofrer homofobia (injúria racial equiparada) quando seu agressor, acreditando que a vítima seja homossexual, profere ofensas valendo-se de termos pejorativos atrelados de forma criminosa a esse grupo minoritário e estigmatizado.
4. Agravo regimental desprovido.
(STJ - AgRg no HC: 844274 DF 2023/0277540-0, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 13/05/2024, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/05/2024)
A hermenêutica da 5ª Turma é irretocável para garantir a efetiva proteção da comunidade LGBTQIAPN+. Não é preciso ir muito longe para lembrarmos do lamentável caso de 2011 em que um pai e seu filho foram cercados por 20 pessoas e covardemente agredidos ao serem confundidos com um casal2. O pai foi nocauteado e teve parte da orelha decepada pelos agressores. O filho teve hematomas leves.
Só esse caso seria suficiente para haurir a importância de coibir a discriminação independentemente da identidade ou orientação da vítima, mas o argumento não se esgota aí.
Em 24 de junho de 2012, um jovem de 22 anos, José Leonardo da Silva, foi brutalmente assassinado por oito pessoas após ser confundido com um homem gay por estar abraçado ao seu irmão, José Leandro da Silva, em Camaçari, na Bahia. O irmão sofreu lesão em três pontos do maxilar e teve o seu olho esquerdo perfurado. 3
Todos esses episódios violentos ilustram um quadro preocupante, pois entende-se que os crimes de discriminação LGBTfóbica, além de aviltarem pessoas LGBTQIAPN+ (vida, integridade física e dignidade humana), também afetam pessoas cisgênero e heterossexuais que sequer registram qualquer dissidência de gênero que seria comumente alvo. Em tal sentido, explica o Professor Paulo Iotti em sede doutrinária:
“Fala-se em orientação sexual ou identidade de gênero real ou atribuída no sentido de se caracterizar a homofobia/transfobia tanto quando as vítimas sejam agredidas/discriminadas/ofendidas/ameaçadas por sua real orientação sexual ou identidade de gênero não heterossexual cisgênera e também quando as vítimas são heterossexuais, mas são confundidas com LGBT, ou seja, são agredidas por terem a si atribuída uma orientação sexual ou identidade de gênero distinta da sua (adiante se trazem exemplos disso)4.”
Urge ressaltar que a inteligência da norma que coíbe a prática de atos e discursos racistas alberga não só a ofensa à honra de pessoas queer, como também de qualquer pessoa que tem a sua identidade equiparada a de uma pessoa queer com o objetivo de ofendê-la5.
O Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 844.274 da 5ª Turma é excelente para vislumbrar essa teleologia.
O caso concerne uma vítima que gravou um vídeo no perímetro contíguo a sua residência ao ser chamada de “viadão” e ouvir gritos para “sair do armário, giletão”. A vítima é heterossexual, casada com uma mulher na constância de uma relação heteronormativa, e teve a sua honra subjetiva vilipendiada com ofensas de cunho homofóbico.
O acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios elucidou bem a questão subjacente:
Como salientado por NUCCI, a injúria “macula a honra subjetiva, arranhando o conceito que a vítima faz de si mesma”[4]. Sabendo FÁBIO que CLÁUDIO havia acabado de chegar em casa, passou a gritar, proferindo ofensas de cunho homofóbico, não restando dúvidas de que houve dolo específico em ofender a honra subjetiva da vítima, uma vez que o crime de injúria se consuma quando a vítima toma conhecimento da ofensa. Portanto, independentemente de CLÁUDIO ser homossexual, por estar dentro de sua sala de estar ouvindo os gritos do acusado, o qual proferia ofensas de cunho preconceituoso e homofóbico, teve sua honra atingida. Entender conforme sugere a defesa seria admitir que se pudesse ofender indiscriminadamente uma pessoa ou um grupo ao qual ela pertence (ou não) mediante a justificativa de que os insultos não eram para ela, mas genéricos. Não é factível que se admita perguntar a uma vítima de injúria qualificada se ela é ou não homossexual (judia, negra, etc). Para que se tenha a certeza da ofensa, basta a representação, conforme o art. 145, parágrafo único, do Código Penal. O comportamento de FÁBIO foi direcionado com consciência e vontade de ferir a honra subjetiva da vítima, inferiorizando uma parcela da população minoritária e vulnerável, a qual – contrariamente ao que alega o apelante – sofre inegável violência, não apenas moral.
Não compete ao Poder Judiciário adotar tese defensiva que iria fragilizar o entendimento fixado na ADO 26 ao reconhecer atipicidade de conduta que visa sujeitar a honra subjetiva da vítima ao desprezo por não ser ela própria integrante da comunidade desprezada pelas ofensas.
O consentâneo lógico de reconhecer tal atipicidade seria prover um salvo conduto para discriminar a comunidade LGBTQIAPN+ sob a escusa de que não se desrespeita individualmente a dignidade de um membro da minoria atacada.
A discriminação contra pessoas LGBTQIAPN+ não é fundada por determinismo biológico ou fenotípico, mas sim da tessitura social em que ocorre.
Sendo, portanto, o racismo um fenômeno social regido pela historicidade e perpetuado pela compreensão de uma estigmatização da expressão da identidade e da orientação sexual divergente ao ideal heterossexista, não caberia a nenhum Tribunal facultar ao tipo penal da injúria racial um requisito obstativo de que a vítima deveria pertencer à comunidade que o réu buscou menoscabar.
Isso feriria de morte os princípios da igualdade e da vedação à discriminação, o primeiro sinteticamente explicado em voto do Ministro Luiz Fux na ADI 5355, que diz: “É sabido que o princípio da igualdade não se exaure na abstenção de discriminar. Quando o preconceito é insidioso, o dever de promover a igualdade material demanda interpretações ativas que rompam com o paradigma vigente.” (STF - ADI: 5355 DF 8622293-59.2015.1.00.0000, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 11/11/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 26/04/2022).
Da mesma forma que, por exemplo, o feminicídio de uma mulher cisgênero pelo autor do delito acreditar que ela é uma travesti automaticamente atrairia a qualificadora do motivo torpe por ser um crime contra a vida cometido por homotransfobia6, independentemente da condição da vítima, também o crime de injúria racial homotransfóbica está configurado mesmo se a vítima desta for uma pessoa heterossexual e cisgênero.
Não se pode olvidar do caso concreto a circunstância de que o menosprezo à identidade queer não se confunde com a autodeterminação da vítima como pessoa LGBTQIAPN+.
Para conferir pujança aos direitos fundamentais, afastada a proteção insuficiente, devemos reconhecer a torpeza dos crimes homotransfóbicos independentemente das circunstâncias da vítima, algo que a 5ª Turma entendeu à unanimidade. Seja um crime para exame e julgamento da Justiça togada ou do Sinédrio Popular, a homotransfobia merece total rechaçamento por parte do Estado brasileiro para que as condutas com ânimo discriminatório sejam reprimidas, pois como lembra o jurisconsulto penal Claus Roxin, o Estado democrático de Direito depende para integralidade de sua coerência sistêmica de “[u]m viver em comunidade pacífico e livre, onde se respeitem os direitos humanos dos membros da sociedade7”.
Palavras chave: Homotransfobia. Justiça Inclusiva. Proteção dos Vulneráveis
3 Pai abraça filho e é agredido por homofóbicos em SP. G1, 19 de jul, 2011. Disponível em: <https://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/07/pai-abraca-filho-e-e-agredido-por-homofobicos-em-sp.html>.
4 OAB repudia assassinato de jovem confundido com homossexual na Bahia. 28 de jun. 2012. Disponível em: <https://www.oab.org.br/noticia/24069/oab-repudia-assassinato-de-jovem-confundido-com-homossexual-na-bahia>.
5 Constitucionalidade e Dever Constitucional da Classificação da Homofobia e da Transfobia como Crimes de Racismo, p. 88/89, item n. 1.1, In: “Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo”, coordenado por Maria Berenice Dias, 3ª ed., 2017, RT.
6 “1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);” (STF - ADO: 26 DF 9996923-64.2013.1.00.0000, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 13/06/2019, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 06/10/2020)
7 “[c]onstituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”); (STF - ADO: 26 DF 9996923-64.2013.1.00.0000, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 13/06/2019, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 06/10/2020)
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