Aos Pedaços

18/05/2023

Aos Pedaços


Dada a eficiência da minha escrevente de sala, combinada com uma mal disfarçada dose de ansiedade, assim que voltei do almoço e antes mesmo que pudesse escovar os dentes, encontrei a audiência instalada e Bruno sentado na cadeira pronto para ser interrogado.  

Para não parecer defasado com a urgência que ela me impunha, sentei-me e já comecei a fazer as perguntas. Foi só quando o ouvia contando a sua história é que me dei conta que ele estava algemado com os braços para trás. Estranhei o fato, pois já havia dado a recomendação para que ninguém se sentasse assim na audiência - afora o nítido desconforto, os réus tinham que usar as mãos, ao menos, para assinar os termos.  

É bom lembrar que ainda não vigorava a Súmula 11, que impunha a toda autoridade que explicitasse os motivos de manter réus algemados. Mas a verdade é que sua aprovação pelo Supremo, provocada como uma reação ao espetáculo da exibição de réus poderosos humilhados em cadeia nacional, viria a influir muito pouco no cotidiano daquelas pobres audiências. 

Antes que tivesse a oportunidade de mandar trocar as algemas, me dei conta de uma incivilidade ainda maior a que Bruno fora submetido: apenas uma de suas mãos estava algemada e na cadeira. O motivo era a própria razão que o levara à prisão e, em seguida, ao processo: 

-Não fui eu doutor; eles disseram que tinha sido um “maneta” e foi assim que me reconheceram. Eu fui o primeiro que eles viram. 

Bruno estava rigorosamente coberto de razão. À sua frente, tivemos a oportunidade de ver o vídeo que supostamente o incriminava - e como acontecia com a maioria dessas câmeras de segurança com padrões de definição precários, não era possível reconhecer nas imagens sua fisionomia, se não apenas a deficiência. 

Ele fora preso quando estava em um farol implorando ajuda - como tantos outros com corpos fragmentados, com os quais nos deparamos em um passeio pela cidade. O policial chamado para ajudar a vítima lembrou-se de tê-lo visto perto do local dos fatos, mas não achou com ele o produto do crime, justamente uma câmera filmadora. 

- Ele pulou e arrancou a câmera doutor, com uma mão só, tinha me dito a vítima; só foi possível saber disso porque ele não percebeu que havia outra câmera virada justamente para a porta da loja, que registrou esse momento. O policial, quando assistiu ao vídeo, falou na hora que acabara de ver uma pessoa assim, duas quadras dali. Conferiu antecedentes e o levou preso.  

Bruno tinha condenação por furto e uma das características do criminoso. Estava na rua pedindo dinheiro. Ou seja, não era trabalhador. Somados os detalhes lá estava ele atado à cadeira que definiria seu futuro. 

“O senhor realmente achou que algemá-lo desta forma seria necessário?”, perguntei ao policial, que sem responder pediu minha autorização para destrancá-lo. Depois me disse que havia ficado com medo de colocá-lo na sala sem algemas, porque alguns juízes certamente reclamariam. Para levá-lo de volta à carceragem, como constatei, a escolta nem as utilizou. 

Se Bruno fora preso pela deficiência, Amarildo seria solto por ela. 

A acusação contra ele era de roubo de um perfume. Simulando emprego de arma, e com o auxílio de sua companheira, teria abordado uma senhora que trazia consigo um frasco de perfume com metade já consumido. O objeto do roubo envolvia algumas moedas que também estavam jogadas na bolsa. Eu até usava com frequência o princípio da insignificância para desprezar subtrações de valores irrisórios, mas com a caracterização do roubo, com a ameaça que a vítima confirmava, esta hipótese era totalmente descartada pela jurisprudência. 

A vítima não tivera muita certeza no reconhecimento, a corré disse que só encontrou seu marido quando ele já estava preso pela polícia. E a polícia disse que, avisada do roubo, flagrou o réu correndo, saltando velozmente um muro e foi encontrá-lo do outro lado da linha do trem. As moedas se perderam, mas o perfume estava jogado a alguns metros adiante. 

A versão do policial parecia coerente, ainda que, no frigir dos ovos, não tivesse visto nem o momento do roubo nem apreendido o objeto da vítima em poder do réu. Quando Amarildo se sentou na mesma cadeira que Bruno havia sido algemado semanas antes, e negou o fato de ter roubado, de ter corrido e até mesmo de ter sido preso perto do perfume da vítima, o promotor fez cara de não acreditar nem um pouquinho no seu relato. Emendou uma pergunta desafiadora atrás de outra, e por fim, foi enérgico: 

-Então o senhor vai me dizer que o policial mentiu e o senhor não pulou correndo aquele muro? 

Foi nesse momento que a indignação de Amarildo se agigantou. 

-Pular o muro, doutor? E correndo? O senhor acha que eu sou capaz disso? 

Foram uns dois minutos de silêncio, antes que Amarildo pedisse licença para colocar os pés na mesa. 

-Posso lhes mostrar? O senhor me permite? 

E como anui com um balançar de cabeça, ele trouxe o seu mais contundente argumento à mostra. 

Ao vê-lo, o promotor colocou a mão na cabeça e disse que estava satisfeito. Já avisou que pedia absolvição e gentilmente fez um sinal para a escrevente, que significava que um estagiário iria lhe trazer a manifestação. Levantou-se e saiu da sala. 

Eu fiquei impactado com aquela cena de Amarildo, algemado, em um esforço desesperado para jogar seus pés sem dedos para cima, em busca da salvação. Imediatamente me lembrei de Bruno, com seu único braço preso à cadeira como um símbolo de autoridade. 

O sistema penal não era apenas uma máquina de moer gente. Ele tratava ainda pior os que por ventura já viessem fraturados. 

“Aos pedaços” estará no livro Os Últimos Réus, continuação de Entre Salas e Celas – Dor e Esperança nas Crônicas de um Juiz Criminal (Autonomia Literária, 2018). 

Marcelo Semer é Desembargador do TJSP e escritor. Membro e ex-presidente da AJD e membro da ABJD. 

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