O Fascismo seria cômico se não fosse trágico

15/11/2022

O Fascismo seria cômico se não fosse trágico


 A primeira reação é de rir. Porque o absurdo, em regra, se apresenta como comédia.


O que vemos nas ruas do Brasil pós 30 de outubro de 2022 poderia ser cenicamente enquadrado no gênero do Teatro do Absurdo: um enredo deslocado do senso de realidade, textos desconexos, personagens com comportamentos estranhos e bizarros. Do ritual cotidiano de cantar os hinos como em uma cerimônia militar às comemorações de “fatos” que chegam por mensagens de aplicativos de celular sobre prisões e mortes de autoridades tidas por inimigas, criação de diálogos que nunca aconteceram, pessoas montam acampamento em frente aos quartéis pedindo ditadura em defesa da democracia.



Nesse rumo o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, foi preso algumas vezes, o espaço aéreo brasileiro foi fechado outras tantas, já houve intervenção militar, o presidente eleito Lula está morto e há um clone em seu lugar com 10 dedos, o que comprova a farsa. Lady Gaga, a famosa cantora estadunidense, preside o Tribunal de Haia, que por evidente não julga mais crimes contra a humanidade, mas apura a “fraude eleitoral” no Brasil. As alucinadas teorias são fácil e rapidamente aceitas por coletivos inteiros de homens e mulheres vestidos de verde e amarelo, que tomam chuva e sol há 14 dias.


Sim, poderia ser de fato engraçado.


Ocorre que o cômico nesse caso é a superfície da tragédia humana da falta de sentido de pertencimento de cidadãos perdidos em sua própria retórica. As alusões bíblicas, os pedidos a Deus, as orações desesperadas dão o tom de fundamentalismo extremado para justificar posicionamentos doutrinários que, a propósito, fazem uma interpretação das leis espirituais e dos fatos sociais que compõem nosso precioso e inalienável patrimônio humanístico de forma oposta ao sentido. Transformam a palavra de Deus em fio condutor da defesa da tirania e de suas vontades.


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Até aí nenhuma novidade histórica, ao contrário. Em sua obra autobiográfica “Mein Kampf” Hitler dizia que seu comportamento estava de acordo com a vontade de Deus. O que mostra que mesmo o regime que representou o mal extremo usou Deus e elementos da fé cristã para justificar sua ideologia. O Cristo dos inconformados com o resultado eleitoral no Brasil é o mesmo de Hitler, concede a eles o direito de decidir o que é o bem e o mal e como agir diante de suas próprias conclusões.


Mas se o fanatismo apocalíptico faz parte da História da humanidade, ela também ensina a não o subestimar.


Já sabemos, porque a realidade já arrombou a porta de quem ainda se recusava a enxergar, que os regimes autoritários são produto social e contam com apoio de parcelas da sociedade, que em vários lugares são significativas, em alguns são maioria. O que nos obriga a superar as dicotomias mais simples como opressor e oprimido ou apontar a alienação objetiva como critério absoluto, para pensar os valores e referências sustentam a aceitação e aclamação apaixonada de um líder que defende a tortura e a eliminação de adversários, como é o caso de Jair Bolsonaro.


Na perspectiva de futuro, chamá-los de gado e rir das bizarrices não vai nos ajudar como sociedade. Tem povo na rua clamando por autoritarismo. O candidato que os representa teve mais de 58 milhões de votos. Reconhecer a relação de parte da sociedade com o autoritarismo e defensora e práticas fascistas é parte do processo para formular instrumentos válidos e úteis para combatê-los, e para criar estratégias capazes de enfrentar, vencer, superar e transformar e buscar novos e positivos consensos. Que não são obras de um governo.


No curto prazo é preciso apontar a responsabilização, inclusive criminal, de quem estimula, financia, patrocina e participa dos atos fascistas que pedem intervenção das Forças Armadas.


Do ponto de vista institucional a etapa vencida com a eleição do ex-presidente Lula nos coloca em um patamar de garantir melhor ambiente de disputa de hegemonia social, onde as políticas públicas se mostrem como consequência da busca da redução das desigualdades em todos os campos. Mas o espaço da institucionalidade não substitui, não supera e não se impõe sobre o papel da sociedade civil organizada.


Ao lado do esforço pela pacificação do país e do fortalecimento e funcionamento das instituições, a implementação das agendas devem ser garantidas em diálogo direito com a sociedade civil organizada, que delas se empoderem para sinalizar que são frutos dos valores e referências, da cultura política que marcam as escolhas.


Tânia M. S. Oliveira é advogada, historiadora, pesquisadora e membro da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

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