Caixa de Maldades

07/07/2022

Caixa de Maldades


Desde que vieram à tona as denúncias de prática de assédios sexual e moral no âmbito da Caixa Econômica Federal, envolvendo seu ex-presidente, Pedro Guimarães, e outros altos executivos da empresa pública, muito já se escreveu sobre o tema, a partir de múltiplas perspectivas distintas. Exatamente por isso, pensei seriamente em não o abordar nesta coluna. Todavia, o adensamento de relatos e denúncias foi mais forte e venceu minhas resistências.

As primeiras notícias veiculadas indicavam uma rede de assédio sexual coordenado por homens do alto escalão da Caixa (aparentemente, com a conivência de algumas mulheres) contra funcionárias de variados níveis. Como relatado em alguns casos, a recusa ao assédio produzia sobre a empregada recalcitrante a marca informal da indesejada, a senha oculta para que fosse congelada ou preterida na carreira profissional, e pudesse passar a ser vítima de assédio moral, como se pode ver no blog de Andréia Sadi no G1. Em espécie de “letra escarlate” às avessas, a vítima do primeiro assédio, ao não ceder, passava a vítima do segundo.

Além disso, como parecem demonstrar gravações divulgadas pela imprensa, o assédio moral em si mesmo, sem aparente ligação com o fim sexual, era prática usual de gestão na Caixa, com grosserias, intimidações e ameaças constantes sendo utilizadas para reforçar a autoridade incontestável e autocrática das chefias.

Claro que estamos, ou deveríamos estar (ou ao menos seguramente gostaríamos muito de ainda estar), em um Estado Democrático de Direito, no qual a efetiva prática dos atos denunciados e as respectivas responsabilidades pessoais e institucionais deverão ser objeto de rigorosa investigação e apuração, e a eventual punição, seja administrativa, seja judicial, cível ou criminal, deverá ser acompanhada do respeito ao devido processo legal material, à ampla defesa e ao contraditório: a prática de “lawfare” já fez mal suficiente no Brasil, nos últimos anos, e não precisamos reeditá-la. Entretanto, a gravidade e a abrangência das acusações devem, no mínimo, fazer disparar nossos alarmes de que algo vai de mal a pior neste quesito – como em tantos outros alarmes que nos disparam nos últimos tempos.

Segundo dados da Controladoria Geral da União – CGU, órgão interno de controle do Governo Federal, as denúncias de assédio sexual teriam crescido assustadoramente, especialmente após 2017, como mostra o gráfico abaixo, divulgado pela Folha de São Paulo em matéria do dia 04/07/2022 (acesso em 05/07/2022):


Segundo a mesma matéria, levantamento daquela Controladoria indicaria que dois terços dos processos administrativos para apuração de denúncias de assédio sexual findam sem aplicação de qualquer penalidade: entre 2008 e 2022, mais de 900 processos foram instaurados, dos quais pouco mais de 600, concluídos; em apenas 200 houve aplicação de alguma pena; quando aplicada, todavia, a pena tendia a ser mais grave: foram 41 penas de advertência, 90 de suspensão e 95 de demissão. A queda do número de denúncias após o pico de 243, em 2019, seria devida mais ao trabalho remoto durante a pandemia de Covid-19 do que a uma redução da cultura do assédio – em contrapartida, teria crescido o número de casos de violência doméstica contra mulheres, diz a Folha.

Os dados alarmantes da CGU referem-se à administração federal direta e indireta, mas não abrangem as empresas públicas, como a Caixa, objeto das gravíssimas denúncias atuais. Evidenciam, de qualquer modo, a gravidade assumida, no Brasil, dos múltiplos casos de violência de gênero, em que as mulheres são objetificadas e instrumentalizadas como objeto de mera satisfação sexual das chefias masculinas, num desdobramento pernicioso, ainda que bastante esperável, da conjugação de machismo, sociedade patriarcal e autoritarismo neoliberal. As denúncias envolvendo o alto escalão da Caixa, mais claramente, talvez, do que vários outros casos, explicita a profunda vinculação entre patriarcado ancestral e neoliberalismo pretensamente “moderno”, pois cose e entretece os tenebrosos fios que unem violência sexual, violência no local de trabalho e violência como gestão pública e como ação política que caracterizam o capitalismo em geral, sua fase autoritária-neoliberal em particular, e suas facetas nos países marginais do sistema global, muito especialmente. Demonstra, de modo muito evidente, a transição constante entre violência física e violência simbólica, ao mesmo tempo em que pode nos lançar luzes sobre como conter seu avanço.

Em excelente artigo nesta coluna de 23/06/2022, Cláudia Dadico aborda, a partir dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, o conceito de “assédio institucional”, de José Celso Cardoso Júnior e Frederico Barbosa da Silva, o qual “abrange comportamentos provindos de superiores hierárquicos, revelados em seus aspectos objetivos e subjetivos, que constituem ataques às organizações públicas ao afetar suas missões e suas funções”. Segundo aquele texto, o discurso de assédio institucional articula liberalismo econômico radical, desconstrução deliberada das institucionalidades e organizações públicas, e uma gramática da política como guerra híbrida contra o inimigo – esse retorno schmittiano1 como farsa.

No caso do assédio institucional, o alvo direto são servidores e empregados públicos, que acabam sendo afetados em sua saúde física e mental; mas o principal, ainda que indireto, são as próprias institucionalidades geradas no processo político social e comunitário. O Estado Democrático de Direito pressupõe a construção dos espaços públicos – e, em certa medida, mesmo dos privados – como espaços de deliberação e controle das decisões das maiorias, com proteção aos direitos das minorias (ou das maiorias minorizadas, como negros e mulheres). O discurso neoliberal, de caráter puramente ideológico, quase religioso, vende a ideia de um superindividualismo ultracompetitivo, um empreendedorismo voluntarista, enquanto precariza, na prática, as condições reais de exercício de todo e qualquer tipo de trabalho, seja formal, seja informal, seja braçal, seja intelectual, ainda que afete mais intensamente trabalhadores braçais com menor escolaridade e renda, de pele preta e do gênero feminino. Esta lógica predatória da competição de todos contra todos mina as bases conceituais e existenciais da ideia de uma comunidade democrática, que compartilha problemas e responsabilidades pelas decisões quanto à sua resolução e à criação de seus destinos.

A transposição constante do discurso predatório específico para o geral, e vice-versa, condensa a ideologia neoliberal e a apropriação privada de corpos, tempos, riquezas, formas de trabalho e seus produtos, de uma maneira paradoxal: prega a liberdade absoluta, como ideologia, mas entrega controle constante e total sobre todas as liberdades das pessoas comuns, inclusive a sexual, como prática cotidiana, construindo um verdadeiro “fetiche das liberdades”, sustentadas apenas em sua forma abstrata, individualista e restrita ao mercado2. O escândalo da Caixa mostra com nitidez os nós profundos que articulam todos estes momentos – sexual, moral, institucional – do assédio, da intimidação e do medo como fundamentos de uma ordem social total e, neste sentido, ainda que muito distante dos movimentos sociais de extrema-direita dos anos 1920 e 1930, não há como não se perceber a natureza manifestamente fascista desta construção, no sentido de elaboração de novas formas de sociabilidade baseadas naqueles fundamentos e na exclusão, como diz o sociólogo português Boaventura de Souza Santos.

É por isso que a luta por uma sociedade mais justa e igualitária, politicamente emancipada e madura, econômica e ecologicamente equilibrada, não pode ser desconectada da luta contra o racismo, contra a LGBTfobia, contra a misoginia e o machismo. Ao contrário do que disseram alguns teóricos da pós-modernidade, as chamadas “grandes narrativas” não apenas não morreram, como são mesmo indispensáveis para a construção de um amplo projeto inclusivo e democrático oposto e alternativo ao totalitarismo capitalista neoliberal, capaz de apresentar não apenas uma face desconstrutiva-negativa, mas também construtiva-positiva. A tarefa gigantesca que se põe, ao revés, é como construir com todos e todas esta grande narrativa da inclusão.

A referência que fiz acima ao romance “A letra escarlate”, de Nathaniel Hawthorne, transposto para o cinema em 1995 por Roland Joffé, não foi casual: ainda que as circunstâncias entre os EUA de 1666 e o Brasil de 2022 sejam inteiramente distintas, o traço comum neste intervalo de mais de 350 anos é a persistência, sob outras formas e mecanismos, do controle autoritário e opressivo sobre os corpos das mulheres, e sua marcação pela sociedade patriarcal, seja com a letra “A” evidente, de “adúltera”, seja com a chaga invisível, imposta à vítima resistente ao assédio das chefias, de ser indesejada no espaço social ou profissional, e mostra como a pretensa “modernidade” neoliberal é apenas a reciclagem gourmetizada das formas ancestrais de dominação. Nessa medida, assim como, numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, numa sociedade misógina, em que crescem os casos de assédio sexual e violências contra as mulheres, e eles visivelmente se articulam com as outras formas de assédio, moral e institucional, é preciso ser antimachista, aderir à luta feminista. Claro que não se trata de relativizar o protagonismo feminino nesta luta, mas uma boa narrativa não se faz apenas com protagonistas, precisa também de bons personagens secundários. A nós, homens, cabe denunciar e não contemporizar com comportamentos assediadores, opressivos, simbólica ou fisicamente violentos contra mulheres, dar-lhes apoio e solidariedade, engrossar as listas e mobilizações contra estas práticas em todos os níveis. Só assim estaremos seguros de que não seremos, nós mesmos, nem assediadores, nem vítimas de outras modalidades de assédio.

Libertemo-nos todos e todas juntas desta sociedade opressora, e comecemos a varrer da história toda forma de assédio, de violência, de discriminação e de exclusão







1 Para Carl Schmitt, grande expoente da teoria do Direito nazista, a distinção que definiria conceitualmente o político seria aquela entre amigo e inimigo, inimigo que deve ser entendido como o outro, o estrangeiro, o hostis (SCHMITT, Carl, O conceito de político. Petrópolis: Vozes, 1992), enquanto que a luta entre amigo e inimigo deve ser entendida em seu sentido físico: ela não “significa aqui concorrência, nem a luta ‘puramente espiritual’ da discussão, nem o ‘combate’ simbólico (...). Os conceitos de amigo, inimigo e luta adquirem seu real sentido pelo fato de terem e manterem primordialmente uma relação com a possibilidade real de aniquilamento físico” (Op. cit., pp. 58-9).


2 O que se vê nitidamente, por exemplo, em um dos maiores pensadores neoliberais, Hayek, que defende apenas e tão-somente a liberdade individual, entendida como liberdade meramente econômica, circunscrita ao âmbito do mercado, pouco importando a sustentação de uma sociedade essencialmente democrática: a democracia, ainda que “preferível” para a ordem de mercado, só é válida se e enquanto protege e assegura a existência desse mercado (ver HAYEK, Friedrich. Os fundamentos da liberdade. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Visão, 1983; para uma noção geral das questões envolvendo as tensões entre democracia e neoliberalismo, ver meu artigo GARCIA, José Carlos. “Neoliberalismo e democracia”. Direito, Estado e Sociedade. Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro, n. 13, pp. 69-88, ago-dez, 1998. Disponível em https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/issue/view/42.  


*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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