A extradição de Julian Assange

21/06/2022

A extradição de Julian Assange


 Com a extradição de Julian Assange assinada pela Secretária do Interior do Reino Unido, Priti Patel, a democracia liberal europeia confirma novamente que suas deficiências não são contradições, encontráveis aqui e acolá: integram a essência de sua natureza. Se as aparências bastassem, não seria necessária a ciência. Há 60 anos atrás, a justiça alemã enfrentava o conhecido Spiegel-Affäre, ou “caso Spiegel”, que envolveu a prisão por 103 dias do editor da revista Der Spiegel, Rudolf Augstein. Ao revelar aspectos da defesa militar da Rep. Federal da Alemanha, a revista Der Spiegel teve suas instalações vistoriadas e material apreendido pela polícia. 


O caso terminou na demissão do então Ministro da Defesa, Franz Josef Strauss, e foi levado ao Tribunal Federal Constitucional alemão. A decisão dividiu o Tribunal, mas prevaleceu a tese de que, em assuntos militares, a informação do público deve ficar em segundo plano: "por um lado, porque os leitores não podem formar seu próprio julgamento independente por falta de conhecimento especializado suficiente, e por outro lado, porque eles não precisam deste conhecimento para formar seu julgamento político”. Eis o verdadeiro escândalo da decisão.


A Secretária do Interior Priti Patel ressuscitou este entendimento sobre a liberdade de imprensa, agora com a vassalagem que o sistema judicial de um país independente presta a uma potência mundial. O Reino Unido preservou Augusto Pinochet da extradição para a Espanha, mas entregará Assange aos Estados Unidos, ao que tudo indica. O mesmo Reino permitirá que legislação dos Estados Unidos seja aplicada em seu território. Há um terceiro ator, igualmente defensor da democracia liberal, que permitiu que um de seus cidadãos seja vitimado por tal ignomínia: o governo da Austrália deu sua contribuição sob a forma de completa omissão diante do caso, quando deveria proteger seus cidadãos. Em resumo, todos se ajoelharam perante a insistência do governo norte-americano, deixando evidente o limite de suas soberanias. E de suas democracias.


Assange não é um criminoso: revelou crimes cometidos pelo governo dos Estados Unidos da América que praticamente todos os jornais do mundo divulgaram. Assange não teve direito a um julgamento justo no Reino Unido, especialmente porque sua defesa foi privada de amplo acesso a documentos, em diversas ocasiões. Nem terá outro nos Estados Unidos, como as evidências de precedentes alegados por sua defesa provaram durante o processo na justiça britânica.


Relativamente ao devido processo legal e à liberdade de imprensa, dois festejados elementos básicos da democracia liberal, este mesmo modelo de democracia mostra seus limites quando esbarram no poder econômico e geopolítico do mais forte. A tentativa de domesticação pelo direito deste poder não tem passado de uma ilusão, quando se comprova novamente que a lei é aplicada de forma diferente, ainda mais contra os mais fracos. Em outras palavras: nem todos são iguais perante a lei.

 

Há outro elemento mais sofisticado, porém igualmente caro aos liberais da argumentação jurídica e das chamadas teorias da decisão judicial. Chama-se a racionalidade. Costumam sustentar estes liberais que toda decisão judicial que foi fundada na racionalidade, não somente é válida, como é justa. Quando se lê a decisão de Plessy v. Ferguson, que manteve a segregação racial nos Estados Unidos, em 1896, ou a decisão da Corte Suprema do Reino Unido contra Assange, percebe-se que ambas são dotadas de racionalidade. Seus argumentos são concatenados. Mas são contrários às constituições e aos precedentes, além de violarem fortes consensos mínimos firmados pela política democrática e de expansão de direitos individuais e coletivos.

 

O que os liberais escondem é que a razão pode ser usada para o mal, e que, portanto, a racionalidade das decisões não esgota a análise dos casos. É necessário ir à história e à ciência política. São estas que nos advertem porque Assange será realmente extraditado, e auxiliam a compreender porque as leis da democracia liberal não subsistem, tampouco garantem os direitos e garantias individuais e coletivos criados pela mesma democracia liberal. Desde 1895 que Friedrich Engels reconheceu o fenômeno: os partidos da ordem conservadora gritam desesperados sobre a legalidade que eles próprios criaram: a legalidade nos mata! Talvez esta seja a mais necessária lição que devamos ter sobre o caso de Assange e de seu julgamento, além de lamentarmos profundamente o sofrimento indescritível que instituições governamentais e judiciais impuseram a um jornalista que desempenhava seu trabalho profissional.


*Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza, procurador do Município de Fortaleza e membro da Secretaria de Assuntos Internacionais da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

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