23/01/2019
Com armas e sem proteção
Segundo o instituto Datafolha, em dezembro, 61% eram
contra a posse de armas, em outubro eram 55%. O decreto contraria a
opinião da maioria da população.
por Gabriel Sampaio*
No último dia 15 de janeiro de 2019 foi publicado o
Decreto nº9.685, de 2019 que alterou a regulamentação do
Estatuto do Desarmamento (ED). Segundo o texto, passam a ter automaticamente
"efetiva necessidade" para adquirir uma arma, além de
militares e agentes de segurança pública - sistema penitenciário,
socioeducativo, inclusive -, colecionadores, atiradores e caçadores,
habitantes de zonas rurais e donos de comércio ou de indústrias,
bem como, qualquer habitante de cidades em unidades federativas com
mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da
Violência 2018.
Também foi estabelecida a necessidade de declaração do postulante
à aquisição da arma que mora em residência também habitada por
criança, adolescente ou pessoa com deficiência mental, de que
a sua residência possui cofre ou local seguro com tranca para
armazenamento. Além disso, o prazo para renovação do registro sobe
de 5 para 10 anos; pessoas que já têm armas legalizadas ficam com
os registros automaticamente renovados por 10 anos e torna possível
a autorização para a compra de até 4 armas de fogo, número que
poderá ser maior a depender do número de propriedades, das
circunstâncias e da comprovação da "efetiva necessidade".
O novo ato normativo foi celebrado pelo presidente, em publicações
em sua
rede social:
“Por muito tempo, coube ao Estado determinar quem tinha ou não
direito de defender a si mesmo, à sua família e à sua propriedade.
Hoje, respeitando a vontade popular manifestada no referendo de 2005,
devolvemos aos cidadãos brasileiros a liberdade de decidir.”
“Além das inúmeras iniciativas tomadas nestes primeiros dias de
Governo, aumentamos de 3 para 10 anos o prazo para a renovação da
posse da arma de fogo e acabamos com a subjetividade para a compra,
que sempre foi dificultada ou impossibilitada. Esse é apenas o
primeiro passo!”
Cidadãos sem proteção
A medida se mostra absolutamente inadequada, o que pode ser
comprovado pelas inconsistentes premissas do próprio presidente.
A rigor, a vontade popular manifestada no
referendo de 2005, dizia
respeito a um ponto específico do ED, o art. 35, que trata da
proibição da comercialização de arma de fogo:
“Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei.
§ 1º Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
§ 2º Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral.”
Portanto, a população
rejeitou apenas a proibição da comercialização de armas de fogo,
tendo permanecido hígidas as regras para sua aquisição, quais
sejam: declaração de efetiva necessidade, comprovação de
idoneidade (atestado de antecedentes criminais), ocupação lícita e
residência certa, além da capacidade técnica e da aptidão
psicológica.
Incontornável o fato de que é inerente ao conceito de “efetiva
necessidade” a análise individualizada de cada caso de aquisição.
A presunção dessa necessidade, criada pelo novo decreto, afasta a
importante
avaliação da PF sobre a capacidade dos órgãos de
segurança pública oferecerem proteção adequada a esses cidadãos.
Insustentável
Admitir a excepcionalidade da posse da arma implica reconhecer o
risco e a vulnerabilidade que representa ao seu possuidor. Logo, cabe
ao Poder Público observar e mensurar as diversas dimensões de risco
pessoal, familiar e social potencializadas com a posse da arma, sendo
inegável que o particular não dispõe de condições para tal
análise.
Mais do que isso, o governo editou a norma sem apresentar dados que
demonstrassem as supostas arbitrariedades praticadas pela PF na
rejeição de registros. A contradição da publicação do
presidente na rede social é revelada pela análise de dados que
apontam para o crescimento de licenças para aquisição de armas.
Segundo
dados da PF, seu número passou de 3.029, em 2004, para
33.031, em 2017, ou seja, crescimento de mais de 10 vezes, havendo
mais de 600 mil armas em posse de civis no país.
Maioria da sociedade é contra
Outra questão importante refere-se a respeitadas pesquisas que
tratam do impacto da circulação de armas no aumento das taxas de
homicídio. Para Daniel Cerqueira, do
IPEA, o aumento de 1% de armas
de fogo eleva em até 2% a taxa de homicídio. Já o Instituto Sou
da Paz revela que armas utilizadas em crimes
provêm, em sua maioria,da produção e venda legal. Esses dados são cruelmente
complementados pelo fato de que cerca de
71% dos mais de 60 milhomicídios no país são praticados com arma de fogo e de que já
foram quase 1 milhão de vidas perdidas entre 1980 e 2016 por armas
de fogo.
Não é demais ressaltar que a própria população é
majoritariamente contra a posse de armas.
Segundo o instituto Datafolha, em dezembro, 61% eram contra a posse de armas, em outubro
eram 55%. Conclui-se que, o decreto além de contrariar o ED, também
contraria a opinião da maioria crescente da população.
É evidente que o decreto fragiliza a sociedade tornando-a mais
vulnerável à violência com o aumento da circulação de armas,
além de, esvaziar o papel dos órgãos de segurança pública e do
Parlamento no estabelecimento de critérios que envolvem a essência
do ED. A sociedade, lamentavelmente, foi alijada de um debate
fundamental para a vida de tantos brasileiros e com graves
consequências para sua segurança.
*Gabriel Sampaio é advogado e professor de direito.