A história não marca encontros

12/11/2019

A história não marca encontros






Márcio Tenenbaum 
Integra o Grupo Prerrogativas 
Associado da ABJD 

A história não agenda compromissos, nem reuniões, a história se depara com fatos. Em 2009, pela primeira vez desde a promulgação da Constituição de 1988, o STF declarava que a prisão só se daria após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O país já estava no sexto ano do governo Lula, políticas públicas de inclusão das minorias e dos excluídos do mercado eram implementadas, crescimento econômico e defesa da soberania nacional eram pautas cotidianas na imprensa que se espalhavam sobre o imaginário coletivo. O país recuperava sua autoestima e era o momento propicio para a decisão do STF garantindo a previsão transparente do art. 5º inciso LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, cujo conceito se aprende nos primeiros anos de qualquer faculdade de Direito do país.

Tribunais superiores nem sempre julgam de acordo com a literalidade e obviedade das Leis, na maioria das vezes, ao contrário, julgam de acordo com o ambiente político. Foi assim que esse mesmo STF em 1936, no julgamento do habeas corpus impetrado para tentar evitar a expulsão de Olga Benário, sequer tomou conhecimento do recurso, com base no decreto 702 de 21/03/1936 do governo Vargas que suspendera por 90 dias o habeas corpus. O Acórdão foi proclamado em 17/06/1936, quatro dias antes do prazo final da suspensão do remédio salvador que poderia evitar a expulsão. A pressa do STF naquela época foi semelhante à mesma pressa que os tribunais atuais tiveram no julgamento de Lula para que fosse impedido de concorrer às eleições de 2018. No habeas corpus de Olga Benário, sequer foi analisada a informação que estava grávida, um dos argumentos do advogado de defesa. Grávida, a expulsão não poderia também ser imposta a uma outra pessoa, no caso sua filha que carregava no ventre. A pena jamais poderia passar da pessoa do réu, mas esse argumento sequer foi analisado por esse mesmo STF.

No caso do recurso de Lula ao STJ, o pretexto foi a Súmula 7 do Tribunal que nos diz que, se o único pedido for o reexame das provas, não enseja recurso à Corte. Postura semelhante ao STF quando do julgamento de Olga Benário, lavando as mãos para não entrarem no mérito de uma prisão injusta, mesmo havendo diversas outras alegações no recurso ao STJ, não somente a discursão acerca das provas.

A mesma postura tiveram os tribunais nazistas referendando todas as medidas raciais do nacional-socialismo impostas a partir da chegada ao poder em janeiro de 1933 na Alemanha. Também a Suprema Corte norte americana age politicamente quando interpreta a 14ª emenda estendendo as garantias individuais às corporações, segundo análise que Gilberto Bercovici faz em seu artigo intitulado “A Constituição Invertida”. Naquela decisão, a base jurídica para o início do liberalismo, a partir dessa interpretação da Suprema Corte, estava criada, com a proibição ao executivo de expedir qualquer decisão que gerasse um processo de intervenção na atividade econômica das empresas. Era uma interpretação necessária para o nascente capitalismo americano. Somente 50 anos após essa interpretação a mesma Suprema Corte permite intervenção econômica do executivo quando a crise de 1929 colocava 30% da força de trabalho no desemprego, inaugurando a Grande Depressão. Portanto, está mais que óbvia a natureza política nas decisões das supremas cortes e foi também uma decisão política que levou, em 2016, a Suprema Corte Brasileira a alterar seu entendimento do art. 5º inciso LVII, exatamente no ano do golpe contra a presidenta Dilma, abrindo as portas para a futura prisão de Lula.

Ocorre que, como na Caixa de Pandora, ao libertar todos os males, menos a esperança, o STF, em 2016, legitima a perseguição política contra a esquerda, espectro político a ser destruído pela burguesia, que já antevia que seria chamada a colaborar na solução da crise fiscal que se abatera no país e em todo o chamado mundo em desenvolvimento após a crise do capitalismo de 2007, derrubando todos os mercados mundiais e, principalmente a China, grande compradora de commodities.

Para se ter uma ideia, a China, que crescia na ordem de 14% ao ano, atualmente cresce em 6%, uma queda de 50%; os países exportadores não passariam imunes. O vácuo político que se abateu no país com a prisão e perseguição política de diversas lideranças, capitaneadas pelo Ministério Público, pela imprensa e pelo juiz Sergio Moro através da Operação Lava Jato, abrem a oportunidade da extrema direita tomar o poder e, com ela, abre-se também a oportunidade da implantação das medidas neoliberais que vinham sendo propostas desde a implantação do Plano Real, em 1994, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso.

Com a eleição de Bolsonaro, inicia-se rapidamente a implantação dessas medidas: em menos de 1 ano de governo aprovam-se a redução, ao mínimo, da legislação trabalhista vigente há 80 anos, reforma da aposentadoria com redução futura, na ordem de 40%, dos proventos, venda das estatais, congelamento do aumento real do salário mínimo. A crise fiscal seria vencida, se fosse possível, através da contenção das despesas e não através do aumento das receitas, via aumento de impostos. Mais uma vez é o povo brasileiro quem seria chamado a pagar a conta, não a burguesia. Mais uma vez a história apresenta sua fatura: em crise fiscal, com a esquerda politicamente forte, a burguesia aceita a retirada da democracia, mesmo que temporária, como disse inclusive um ex-ministro do STF, retiram-se direitos e implanta-se um governo que ameaça qualquer contestação com uma Espada de Dâmocles sobre a cabeça dos incautos.

Mas como a história não marca compromissos nem reuniões prévias, mas somente fatos, o mesmo STF que se viu compelido em 2016, pela liderança do ministro Gilmar Mendes, a aceitar a prisão após decisão em segunda instância, revendo uma posição de 7 anos, o mesmo ministro que impediu a nomeação de Lula como ministro de Dilma, em uma afronta ao princípio secular da separação dos poderes, é o mesmo ministro que inicia uma liderança contra o avanço do fascismo no sistema de justiça e principalmente contra o Ministério Público Federal. Mais uma vez é a política quem comanda os fatos na decisão da Suprema Corte, em uma decisão corajosa da maioria, que tenta dar uma oportunidade à classe política em afastar a extrema direita do poder.

Com essa decisão, Lula, Dirceu, Vaccari e outros são libertados, mas o país não é o mesmo de quando Lula foi preso. Em abril de 2018, no momento da prisão de Lula, o país começava a corrida pela presidência que levaria Bolsonaro, o neoliberalismo e a extrema direita ao poder. Em um ano de governo, medidas que afetarão a vida política e econômica futura do país foram implementadas e não serão ou dificilmente serão revertidas. A perda de direitos impostas pela burguesia à classe média e à classe trabalhadora com apoio da larga maioria dos representantes do Congresso Nacional, que são integrantes dessa burguesia, altera profundamente a luta para reconquista do poder pela esquerda.

Em 2003, quando do primeiro governo Lula, a base social criada por Vargas há 80 anos ainda existia, a aposentadoria não havia sido cortada em quase 40%, aposentadorias por morte não haviam sido extintas, o pré sal não tinha sido descoberto e, depois de descoberto, não tinha sido vendido, a Lava Jato não existia, não convivíamos com o ódio ao PT e nem o centro político havia se bandeado para a extrema direita, portanto, o país não é o mesmo. As políticas de alianças com o centro que deram suporte aos governos petistas não existem mais, simplesmente porque esse centro não desejará formar novas alianças com a esquerda. Como formar alianças com um centro político que se aliou com a extrema direita neoliberal para aprovarem todas as medidas que retiraram direitos? Mesmo que essas alianças fossem possíveis, como explicar ao povo brasileiro alianças com o mesmo grupo que retirou direitos sem parecer traição, sem perder legitimidade e mais importante, sem perder o discurso de esquerda? Simplesmente passaremos adiante, como se nada houvesse acontecido nesses últimos dois anos? Qual o objetivo de um partido de esquerda sem a implantação de melhorias de condições de vida, sem melhorias nas relações trabalhistas, sem melhoria nos serviços públicos de educação e saúde?

Um partido de esquerda que não vislumbre esses objetivos não tem razão de existir e não há nenhum espaço, na conjuntura política do país, para qualquer aliança com a centro-direita ou somente o centro que retome a trajetória das bandeiras da esquerda e que cancele todas as medidas neoliberais que retiraram os direitos trabalhistas e previdenciários jogando todo o peso na reconstrução fiscal do país nas costas da classe trabalhadora e na classe média. Portanto, estamos sozinhos. Talvez não seja de todo ruim, pois seremos obrigados a refazer e construir o movimento e a luta em outras bases. Teremos que fazer o be a bá, organizar, organizar e não perder nossa legitimidade, nosso discurso e nossa razão de existir.

A história está cheia de exemplos de partidos de esquerda que desejaram um atalho, mas, às vezes, depois do atalho, vem o precipício.


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